2 poemas de CLARA MELLO

CANTO DA SEREIA

Entre coxas conchas
Ouço o barulho do mar
Amor afoga e transborda
Naufraga meu barco
E me entrega a boia.
Me conta lendas,
Me tira a memória
O amor é aquático
E tem que molhar.
Diz o ditado das ondas
Água mole em carne dura
Bate até a sereia cantar.

SIMPATIA DE DESAMOR

Hoje quase fiz uma macumba pra me desapaixonar por você
Uma oração pra São Cipriano de desamarração
A benção da Pomba Gira para despacho do tesão
Ainda faço a tal simpatia de desamor
As cartas confirmaram e a cigana reforçou
Que é poderosa e me traz o bem amado
Em até três dias, totalmente superado
Deixa o tambor tocar, o samba voltar
Parar de chover
Deixa o sol raiar, eu achar um par
Dançar pra valer
Eu já tô quase livre, você vai ver

Tem quase quinze minutos que eu não penso em você.

Clara Mello nasceu no Piauí, mas mora no Rio de Janeiro com seus gatos Dante e Pinga. É formada em Letras pela UFRJ. Escritora, roteirista, dramaturga e astróloga. A paixão é uma emergência é seu quinto livro, o segundo de poesia.

OUTONO DE CARNE ESTRANHA, de AIRTON SOUZA

ADRIANO LOBÃO ARAGÃO

Subindo as adeus-mamãe, o esforço era tão grande que os garimpeiros, a despeito de suas aparências, já não conseguiam distinguir entre a esperança de bamburrar e o lameiro da cava descendo por seus corpos.” (Cap. 10, p 113) No garimpo de Serra Pelada, na década de 1980, chamavam de adeus-mamãe as imensas e precárias escadas utilizadas para retirar dos barrancos inúmeros sacos de terra e lama, atividade exercida pelos “formigas”. “Arrumou com jeito o saco de cascalhos no ombro e caminhou rumo às adeus-mamãe. Foi subindo as escadas com a crescente vontade de gritar de dor.” (Cap. 6, p 78) Não havia nenhum tipo de segurança e o trabalho era efetuado sob jornadas perigosas e exaustivas. Eram comuns os deslizamentos e desmoronamentos, além do contato contínuo com substâncias tóxicas, como o mercúrio, utilizadas no garimpo.

Já o termo bamburrar remetia à descoberta de alguma pepita de ouro, esperança de riqueza e objetivo maior de todas aquelas pessoas que arriscavam suas vidas na Serra Pelada. “Ao falar bamburrar, a paisagem dentro da boca desadormecia e era como se cada letra daquele nome pesasse todos os vocábulos impossíveis dentro da beleza. […] Bamburrar não era vocábulo. Era horizonte ternurado.” (Cap. 5, p. 61-62) “Bamburrar era a febre terçã para a qual não havia cura nas carnes dos garimpeiros” (Cap. 5, p. 62).

Vencedor do Prêmio Sesc de Literatura de 2023, e lançado pela Editora Record no ano seguinte, Outono de carne estranha, romance de Airton Souza, ao longo de seus 17 capítulos, acompanha as angústias e esperanças de um punhado de garimpeiros em busca de arrancar do chão do garimpo alguma riqueza que lhes traga melhores condições de vida, para além da própria subsistência, tendo como foco o difícil ambiente de dois garimpeiros envolvidos num relacionamento amoroso homoafetivo na Serra Pelada, no início da década de 1980. “Os dois homens, nuzinhos, trancados no único cômodo do barraco de Zuza, tentavam, de qualquer maneira, atravessar os fonemas das palavras bateia e bamburro, abraçadas, diariamente, às carnes deles.” (Cap. 1, p 14)

Durante 12 anos de atividade, entre 1980, após a descoberta de ouro na Fazenda Três Barras, até 1992, quando foi oficialmente fechada pelo governo brasileiro, o garimpo em Serra Pelada mobilizou mais de 100 mil trabalhadores, provenientes de todas as regiões do país, sobretudo do Norte e Nordeste. Somente nos primeiros meses, mais de 4 mil pessoas já haviam se deslocado para a região. Localizada no estado do Pará, próximo a Marabá, na Serra dos Carajás, estima-se que cerca de 40 mil toneladas de ouro tenham sido extraídas dos 24 mil metros quadrados disponíveis para o garimpo.

Os barrancos, inicialmente, eram disputados diretamente pelos garimpeiros, mas, ainda no início da década de 1980, ocorreu a intervenção do governo federal, tendo como figura central Sebastião Curió Rodrigues de Moura, o Major Curió, interventor nomeado pelo então presidente João Figueiredo, para administrar o garimpo, incluindo a venda do ouro, que deveria ser feita exclusivamente nos guichês da Caixa Econômica Federal instalados na região.

A história de Manel e Zuza, narrada em Outono de Carne estranha, se desenvolve quando os barrancos do garimpo de Serra Pelada já estavam divididos em diferentes lotes e submetidos a toda uma hierarquia de trabalho e poder, concentrada na figura do personagem marechal e seus capangas, os bate-paus. Observa-se o uso de maiúsculas em alguns nomes próprios e em outros não. Entendi como um efeito significativo, despersonificando palavras como brasília e deus, mas mantendo as maiúsculas das palavras referentes à realidade imediata, como os nomes dos rios e cidades próximas. Em conversa com o autor, Airton me relatou que “a ideia foi diminuir em nós os significados históricos desses lugares e personas. E em contrapartida lançar luzes sobre a região. Invertendo a escala de valores, como modo de vingança em relação a quem nos menosprezou historicamente.

Além de Manel e Zuza, o personagem Zacarias, padre que deixa a batina para dedicar-se ao grimpo, se torna mais uma figura protagonista na obra. No entanto, seu perfil complexo e ambíguo poderia ser mais explorado. Nesse sentido, ficaram algumas lacunas que poderiam ser mais desenvolvidas. Mas é possível que a autor tenha preferido não focar demais em Zacarias para não correr o risco de deixar Zuza e Manel em segundo plano. Porém, Zuza também careceu de maior tratamento. Pouco sabemos de seu passado e de como se deu sua passagem pelo garimpo de Serra Pelada.

Ainda que tenha sido tema de obras cinematográficas, como Serra Pelada, filme dirigido por Heitor Dhalia, em 2013, e estrelado por Júlio Andrade e Juliano Cazarré; Os Trapalhões na Serra Pelada, dirigido por J.B. Tanko, em 1982, e estrelado pelo grupo humorístico Os Trapalhões, além de Louise Cardoso e Gracindo Júnior; bem como o documentário Serra Pelada: A lenda da montanha de ouro, de Victor Lopes, realizado em 2013, pelo tempo em que permaneceu em atividade, pela quantidade de pessoas envolvidas no sonho de bamburrar, pelas dimensões e volume de ouro extraído, é curioso que poucas obras que abordam a Serra Pelada sejam conhecidas do grande público. E nesse sentido, Outono de carne estranha acrescenta uma instigante narrativa a essa lista.

Airton Souza nasceu em Marabá, Pará, no ano de 1982. Apesar de Outono de carne estranha ser sua estreia no romance, o autor se dedica à literatura há bastante tempo, já tendo mais de 40 livros publicados, em diversos gêneros, sobretudo poesia.

Prêmio Sesc de Literatura, finalista do Prêmio São Paulo, na categoria romance de estreia, finalista do prêmio Oceanos, Outono de carne estranha empreendeu uma excelente jornada entre relevantes prêmios e concursos, mas proveio justamente do Sesc, mantenedor do concurso que culminou com a publicação da obra, uma polêmica envolvendo o livro.

Durante a Flip, Festa Literária Internacional de Paraty, a leitura de Airton do trecho de abertura de seu livro provocou desconforto entre dirigentes do departamento nacional do Sesc, presentes no evento: “Quanto mais socava a pica no cu de Zuza, mais Manel escutava o barulho das picaretas. Dos enxadecos. Das mãos repletas de calos. Das velhas enxadas enferrujadas. Dos pedaços de paus. Das bateias roçando levemente sobre a água. Das pás afundando no chão amarelado dos barrancos e dos paredões, quase acinzentados de terra, que formava a cava” (Cap.1, p. 11). O próprio registo em vídeo do momento foi, dias depois, excluído das páginas de divulgação e registro do evento.

Em resenha publicada na revista Quatro Cinco Um, Renan Quinalha levanta os seguintes questionamentos: “Temos um número cada vez mais significativo de obras literárias que atravessam ou incorporam o universo LGBTQIA+, seja por seus autores e autoras, seja pelas personagens e tramas. Mas será que estamos garantindo essa liberdade apenas quando há uma higienização dessas histórias? Só aceitamos e promovemos quando notamos que o sexual se converteu em afeto, mais fácil de digerir? Só toleramos se os arranjos de desejo se submetem à estrutura tradicional da família patriarcal e da heteronormatividade?

O fato é que tal situação enfrentada pelo autor chegou a culminar na demissão de Henrique Rodrigues, criador e coordenador do Prêmio Sesc, configurando Outono de carne estranha como mais um capítulo nesse enredo de intolerância e puritanismo que caracteriza uma sociedade preconceituosa.

Em tempo, o garimpo em Serra Pelada modificou totalmente a paisagem natural, restando somente uma gigantesca cratera na qual se formou um lago com cerca de 200 metros de profundidade. “O que antes era uma montanha, enchia agora o horizonte de vazio e crueldade.” (Cap. 3, p 36)

 

Referências

QUINALHA, Renan. Amores brutos. Quatro Cinco Um. Disponível em: https://quatrocincoum.com.br/colunas/livros-e-livres/amores-brutos/ Acesso em 20 set. 2024

SAYURI, Juliana. Como foi o garimpo em Serra Pelada? Superinteressante, 04 jul. 2018. Disponível em: https://super.abril.com.br/mundo-estranho/como-foi-o-garimpo-em-serra-pelada/

SOUZA, Airton. Outono de carne estranha. Rio de Janeiro: Record, 2023.

SOUZA, Airton. Depoimento concedido a Adriano Lobão Aragão. 19 set. 2024.

Adriano Lobão Aragão é autor de Destinerário (poemas e fotografias), dentre outros. www.adrianolobao.com.br

NATIMORTO

RONALDO CAGIANO

A morte o esperava como um ventre.
Carlos Nejar

Desceu apressado o último lance da ladeira que liga a favela ao asfalto, tênue a fronteira entre dois mundos.

Embaixo, a agitação feérica em tudo difere da camaradagem do morro, onde a comunidade se (re)conhece nas solidárias demandas de cada dia.

O dorso à mostra decalcado de tatuagens: uma caveira nas costas, a estrela de David no peito, versículo dos Provérbios na panturrilha esquerda, Sandra esculpida no ventre e o rosto de Che no calcanhar direito. Apenas um short, suado da caminhada sob o calor implacável, a epiderme expondo-se como um outdoor de mensagens, textos e traços que se misturam num convívio simbiótico de expressões religiosas e políticas. O marxismo e a bíblia lado a lado, o insondável por testemunha.

O guri continua seu passo, numa das mãos uma sacola vazia, o cabelo de um louro artificial recebendo os raios de um sol escaldante, o trânsito ali impedindo-o de vencer o espaço que o separa da outra ponta, onde a avenida é um boulevard de ofertas, um pout-pourri de gente a caminho do trabalho ou de casa, outros em busca de alguma coisa, vai-e-vem de passos antagônicos, no entretempo dos que-fazeres e olhos que se cruzam e não se veem.

Uma senhora de óculos com lentes fundo-de-garrafa, entre balbucios inaudíveis, divide com ele a atenção no fluxo divergente de automóveis, mas recua depois de tentar em vão ziguezaguear entre o escorrer da centopeia metálica naquele meio-dia repleto de velocidade e urgências. Vai-não-vai, passos indecisos em  meio ao trânsito que se retroalimenta numa fluidez descomunal. Os dois ali, estáticos e inermes, diante da força bruta do movimento que parece nunca ter fim.

Ergue-se na ponta dos pés e reconhece na calçada oposta a figura de Wesley, o parceiro das quebradas, a quem grita pelo apelido: “Baiano, ô, Baiano!”, expande a voz num ricochete inócuo e ainda mais uma vez insiste no apelo, mas o “parça” segue sem ouvir o chamado, certamente sua audição impugnada pelo burburinho e estridência dos sons na hora do rush. E sua figura se esfuma no emaranhado de vozes, sons e imagens da metrópole apressurada. Anônimo e resoluto, como areia  na ampulheta, continua na apreensiva tentativa de seguir em direção ao seu destino.

Nem bem o semáforo alternou-se para o verde, a mulher já a meio da via só escutou o barulho surdo do projétil que o derrotaria naquela sexta-feira sem outra novidade qualquer, senão o calvário de que são feitas certas vidas.

Para não tumultuar o trânsito, uns poucos que flagraram o acontecimento antes de a Polícia chegar, retiraram o corpo (silenciado, pálido, já desligado da feroz mecânca daquele dia), a sacola de plástico já havia se extraviado com o aparato de ventos naquele corredor de veículos e motos, um chinelo ainda guarnecia um dos pés.  Entre a indiferença e o temor, curiosos olhavam de soslaio; um bêbado chegou com uma vela e colocou-a rente à cabeça do cadáver, que não trazia celular nem documentos, somente no bolso uma bagana pela metade que já se encharcava com o fio vermelho a escorrer vultoso do lado esquerdo inundando-lhe a epiderme como uma severa e sinistra pichação.

                                                                                                              

Ronaldo Cagiano é mineiro de Cataguases, viveu em Brasília e São Paulo e está radicado em Portugal. Formado em Direito, é autor, dentre outros, de Eles não moram mais aqui (Contos, Ed. Patuá, SP, Prêmio Jabuti 2016); Cartografia do abismo (Poesia, Ed. Laranja Original, SP, 2020) e Arsenal de vertigens (Poemas, Ed. Húmus, Lisboa, 2022).

CAROLINA, MEU AMOR

WAGNER LEMOS

Machado de Assis amou intensamente. O autor que, segundo Antônio Candido, vale por toda uma literatura, teve em Carolina, sua esposa, um dos mais significativos amores e que foi traduzido em poema na forma de saudade, quando ela se foi desta terra material. Luiz Gonzaga também versejou e cantou uma Carolina, personagem que, na canção, aparecia faceira e intrépida exaltando até mesmo uma grafia de seu nome diferente da habitual. Confesso que também me quedei e quedo de amores por uma Carolina. Com Machado e Gonzaga, mantenho as intersecções de sermos homens negros dedicados à prosa e ao verso, encantados por uma Carolina.

Admito que a paixão por ela veio, não nos arroubos da adolescência, em que a cabeça perde o norte e o coração desmantela por inteiro. Na época, com uns trinta e muitos anos, já tendo uns fios brancos nas têmporas, foi que nosso encontro aconteceu. Ela me seduziu pelas coisas que mais me encantam: sensibilidade, inteligência e dom da palavra. O verbo se fez carne: a sua palavra ecoou em mim e me fez ver as afinidades. Ela, sorrateira, encontrou em nossas semelhanças o jeito de me prender nos seus fios invisíveis. Desde, então, estou emaranhado nela. Já passei dos quarenta anos e já coleciono mais fios brancos para além das têmporas. No entanto, a paixão não esmoreceu. Pelo contrário, ganhou corpo e tonificou em amor.

Carolina Maria de Jesus (1914-1977), autora de “Quarto de despejo: diário de uma favelada” (1960), é a senhora dos anseios e inquietações deste aprendiz de escriba.  Suas palavras, frutos da agudeza de suas retinas atentas ao mundo, pude ter a dimensão para compreender quem sou, quem somos. Nos momentos em que faltaram palavras para traduzir o quanto me sentia vindo da periferia e tendo a discriminada pele negra, Carolina, bem antes de eu nascer, já fizera isso. Isso indicava, porém, que de seu tempo ao meu, nada mudara. Nós, negros, continuávamos sendo escanteados a uma condição de pobreza, num crônico racismo estrutural. Nós, negros, continuávamos relegados ao olhar de desprezo para a cor da noite gravada em nossa pele.

De catadora de papel a empregada doméstica, passando por fenômeno editorial, depois esquecida ao ponto de novamente catar papel, Carolina soube muito mais deste país do que aqueles que, dentro de gabinetes, se arvoram a ser intérpretes da nação. Seu senso de realidade a fazia entender o país de modo a afirmar que só teríamos prumo, quando o governante fosse alguém que tivesse conhecido a fome. Não há afirmação mais certeira. Aquele que detiver o poder decisório precisa bem mais do que a empatia. Precisa de sua dose particular de realidade. O mais triste nisso tudo, é que os escritos de Carolina não deixaram de ser sobremodo atuais diante do que vivenciamos no país. Afinal, disse ela “não é preciso ser letrado para compreender que o custo de vida está nos oprimindo”. Com razão, também escreveu na última página de seu mais famoso livro: “a pior coisa do mundo é a fome”. Ela sabia do que falava. Carolina, meu amor.

Wagner Lemos é doutor em Literatura Brasileira (USP) com pós-doutorado pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), professor da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) e líder do Grupo de Pesquisa em Literatura e História (CNPq/UNEB). Autor de Sergipe entre Literatura e História, Tempo de Mangaba; De Sílvio Romero para sua gente, Sílvio Romero e José Veríssimo em combate e organizador da Antologia Escolar da Literatura Brasileira e de Belle Époque e sertão: a linguagem em busca do Brasil; tem no prelo sua 1ª obra infantil, A menina que colhia estrelas.

A ESTRANHEZA DAS IMAGENS DE LYNCH

 WANDERSON LIMA

  

A filmografia de David Lynch utiliza dispositivos que nos imergem em uma experiência de perda do senso de realidade. Somos conduzidos a um estado de desconforto que, por alguns instantes, desnaturaliza nossos hábitos e práticas cotidianas. Esse breve hiato, dependendo do espectador, pode culminar em um frenesi inconsequente ou servir como ponto de partida para uma reflexão mais profunda. De qualquer forma, é nesse processo que reside a singularidade e a força do cinema de Lynch: mais do que narrar histórias de maneira convencional, ele se dedica a criar atmosferas[1]; mais do que ensinar lições ou defender ideologias, ele busca convocar sensações.

Se quisermos precisar melhor quais dispositivos, diremos que Lynch oscila entre a noção clássica de grotesco estabelecida por Wolfgang Kayser – a desfiguração do familiar, que conduz a uma sensação de inquietação e deslocamento e que combina o cômico e o aterrorizante, criando um efeito de ambiguidade e tensão – e o estranho (Unheimlich) estudado por Sigmund Freud, isto é, a ideia de algo que deveria ser reconfortante, mas que é transfigurado em algo desconcertante ou ameaçador.  Em sua forma mais intensa, o Unheimlich pode ser um retorno do inconsciente, uma manifestação de medos e desejos reprimidos, que rompe com a segurança do conhecido. Seja como for, por meio do grotesco ou do estranho[2], quando assistimos Lynch nos falta o chão: o familiar se transmuta em infamiliar, o cotidiano se torna insólito. Essa mescla de distorção e retorno do reprimido é central nas obras de Lynch, onde o cotidiano e o aparentemente comum se tornam cenários de estranhamento e incerteza.

Se observamos bem, essa sensação de desconforto e de perda do real, em si, não é revolucionária ou transformadora. Em boa parte de suas manifestações, em comunidades abrigadas nas redes sociais e em subgêneros da cultura gótica e heavy metal, o grotesco e o estranho tornam-se mecanismos escapistas, fuga do mundo adulto racionalizado, ou meras manifestações de irreverência. Mas, em Lynch, torna-se uma estratégia para construir um mundo muito próprio e lançar questionamentos que, em última estância, nos convidam a pensar a complexidade do real para além dos parâmetros realistas e pragmáticos da representação clássica hollywoodiana[3]. Como instava Luis Buñuel[4], o que certamente converge com a prática de David Lynch, o cinema não deve se limitar a reproduzir a realidade objetiva, mas sim transformá-la e transcendê-la por meio de uma abordagem poética.

Buñuel e Lynch transformam o banal em algo extraordinário e perturbador, mostrando que o cinema pode ser muito mais do que uma simples ferramenta narrativa. Para ambos, o cinema é uma arte capaz de acessar o que está além da palavra, penetrando nos mistérios da mente humana e no imaginário coletivo. No entanto, enquanto Buñuel, mais crítico e iconoclasta, recorre à poesia das imagens para desmontar as convenções sociais e religiosas e desvelar as contradições do mundo burguês, usando sonhos e imagens irracionais para explorar desejos, medos e tabus ocultos, Lynch — embora também expresse as contradições entre moralidade pública e desejos sombrios — busca uma poesia cinematográfica mais na atmosfera e no poder sensorial das imagens e sons do que na subversão ou exposição direta das contradições sociais.

Podemos afirmar que, em David Lynch, o desconforto gerado pela ausência de solidez no mundo e pelo bizarro que corrói a norma constitui a etapa destrutiva de seu trabalho. É possível que nos estacionemos nesse ponto, encerrando nossa experiência estética em uma visita — fascinante para uns, angustiante para outros — a um mundo grotesco. No entanto, podemos dar um salto além se compreendermos que, em Lynch, ao movimento de contração segue-se um movimento de expansão: primeiro, perdemos o mundo; depois, descobrimos que ele é muito mais amplo do que imaginávamos.

Além de um olhar automatizado, que desmagiciza nossa fruição das imagens, tendemos a estabelecer fronteiras muito nítidas entre o real, o imaginário e o onírico. Lynch propõe um retorno à inocência e ao embaralhamento pré-lógico das fronteiras. Ele desce às fontes turvas do inconsciente[5] de onde extrais padrões transpessoais – arquétipos – para moldar grande parte de seus personagens. Seus filmes emergem, pois, do choque entre sua peculiar bizarrice e os modelos universais facilmente identificáveis, e por isso se parecem com um misto de pesadelo e conto de fadas.

Até mesmo nos curta-metragens, Lynch encena como que uma epifania da realidade: tudo o que vemos torna-se infamiliar, misterioso – e nisso vislumbramos um significado mais profundo ou uma verdade subjacente de algo na realidade. O grande problema, a meu ver, é a difícil decodificação desta verdade. Trata-se de uma obra resistente à lógica redutora da interpretação. As imagens de Lynch não constituem um sistema organizado que pode ser trivializado em algum discurso edificante. São imagens poéticas, lúdicas, que mantêm seu núcleo de mistério. Muito se discute se Lynch é ou não um artista surrealista; independentemente disso, há um ponto que ele compartilha com esse movimento: a tentativa de extrair, do fundo do ser, imagens puras, não racionalizáveis, e, portanto, resistentes a uma redução alegórica.

A palavra mistério, frequentemente evocada aqui, está no cerne da experiência religiosa, tal como descrita pela fenomenologia do sagrado[6]. O misterium tremendum — aquele misto de assombro e fascínio que o ícone sagrado ou a experiência epifânica desperta no homo religiosus — é algo que o cinema de Lynch tenta infundir nas imagens de seus filmes. Contudo, essa busca não carrega um propósito de proselitismo religioso. Para Lynch, religião e mito não são objetos de reverência, mas repositórios das grandes imagens que sintetizam os dilemas da condição humana. Ele os utiliza como ferramentas para insuflar estranhamento e densidade em seus personagens e nas situações que vivem.

O resultado é um misterium tremendum profano, uma experiência que nos obriga a questionar nossos sentidos e a reaprender a enxergar o mundo. Diante imagens lynchianas, somos tomados por um sentimento de ignorância, um estado de perplexidade que exige tempo para digerir e decifrar. Essa convivência prolongada com as imagens nos conduz a uma outra forma de experimentar a arte, uma que privilegia as sensações e recusa a facilidade do jogo alegórico imediato — algo raro no cinema de cunho comercial.

Essa desorientação positiva diante da resistência hermenêutica da imagem se complexifica mais porque, como mencionado, em Lynch sonho e o delírio não se deixam separar do que se toma por real. A desorientação, que em filmes mais abertamente comerciais é geralmente temporária e estratégica, percorre as obras de Lynch de ponta a ponta, frequentemente sem oferecer uma resolução no desfecho. Para muitos espectadores, lidar com essas irresoluções e com um universo denso, onde as camadas de significado se confundem, é um desafio. Isso porque, em Lynch, não há qualquer aviso de que estamos adentrando um mundo fabuloso. O cinema de Lynch não é fantástico, mas faz brotar o fantástico no cerne da normalidade. O realismo fílmico não é descartado de imediato.

Assim como no Luis Buñuel de sua fase madura, Lynch preserva a representação clássica típica dos filmes comerciais apenas para subvertê-la em algum momento. A estrutura da narrativa policial, por exemplo, é evocada em seus elementos centrais — como a busca pelo assassino —, mas se dissolve em um jogo de imagens oníricas e imaginadas, que tratam a pseudotrama policial com total indiferença. Lynch utiliza o realismo não como um fim, mas como um veículo para transcender suas próprias limitações.

Os amantes da verossimilhança, do enredo de causa e consequência, da encenação pragmática podem se incomodar e querer capitular. Custa caro romper a aliança, há muito celebrada na indústria cinematográfica, entre cinema narrativo e prazer visual. Mas quem tiver paciência verá que Lynch não é apenas um brincalhão ou um surrealista fora do tempo: ao confundir os planos da existência (real, onírico e imaginário) e liberar sua sombra pessoal, o cineasta nos brinda com narrativas grotescas que oferecem um mundo mais integral do que o realismo social diurno, predominante no cinema americano, no qual o CGI é a única concessão ao sonho e ao delírio.

O espetacular, em Lynch, não se manifesta como tiro, porrada e bomba, mas como algo profundamente entrelaçado à vida cotidiana. Não há uma separação rígida entre a existência comum e o sobrenatural ou o mistério. O que Lynch apresenta é o homem em sua totalidade, inserido em um real que transcende a ordem material captada pela câmera. Pois o homem sonha, delira e imagina — e esses elementos, longe de serem ilusórios, também pertencem à ordem do real.

Refletindo sobre o grotesco, Wolfgang Kayser apresenta argumentos que encontram ressonância no trabalho de David Lynch. Kayser sugere que o grotesco adquire especial relevância na modernidade, quando o ser humano perde o senso de unidade e segurança em relação ao mundo. Nesse contexto, o grotesco emerge como uma resposta artística à crise existencial e à fragmentação da realidade contemporânea. É nesse terreno que se inscreve a obra de Lynch. Contudo, em Lynch, há um esforço para transcender essa fragmentação por meio da sobreposição, na trama fílmica, dos âmbitos objetivos e subjetivos da experiência humana. O resultado dessa sobreposição não é a restituição de uma totalidade perdida, mas a integração do homo demens (irracional, emocional e poético) ao homo sapiens (racional)[7], do homem que sonha ao homem que trabalha, do bárbaro ao civilizado.  Incorporar o sapiens ao demens, reconhecendo a importância da imaginação, do delírio e do sonho na construção de uma psique mais equilibrada, diria até de uma sociedade mais equilibrada, é uma tarefa de relevo que Lynch realizou como poucos.

Wanderson Lima é professor e escritor. Doutor em Literatura Comparada pela UFRN, estuda as confluências entre mito, literatura e cinema. Publicou, entre outros, Ensaios sobre literatura e cinema (Horizonte, 2019) e a obra poética Palinódia (Elã, 2021). 

[1] Para Gumbrecht, a atmosfera é central à experiência estética, pois permite que o espectador interaja com a obra de arte em um nível pré-reflexivo, sem necessariamente buscar decifrar seu significado. Em vez disso, a atenção se volta para como a obra faz sentir. Isso desafia abordagens hermenêuticas centradas exclusivamente na interpretação e na extração de significados. A atmosfera não se limita ao significado do objeto, mas envolve o impacto físico e emocional que a obra exerce. Ver mais em: GUMBRECHT, Hans Ulrich. Produção de presença – o que o sentido não consegue transmitir. Rio de Janeiro: Ed. PUC- Rio, 2010.

[2] A caracterização aqui é demasiado sumária. Para um aprofundamento das duas noções, ver: KAYSER, Wolfgang. O grotesco: configuração na pintura e na literatura. São Paulo: Perspectiva, 1986. E também: FREUD, Sigmund. “O inquietante”. História de uma neurose infantil (O homem dos lobos): além do princípio do prazer e outros textos. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 328-376.

[3] Sumariamente, David Bordwell assim caracteriza o padrão da narrativa clássica de um filme hollywoodiano:  1) a narrativa é guiada por personagens que têm desejos claros e objetivos bem definidos; 2) o estilo visual é transparente, ou seja, as técnicas cinematográficas (edição, movimentos de câmera, iluminação) são projetadas para não chamar atenção para si mesmas; 3) a história é apresentada de forma clara, com um início, meio e fim bem definidos; 4) cada evento tem uma função na narrativa, com uma lógica de causa e consequência; 5) não há elementos narrativos “gratuitos”; tudo serve para avançar a trama ou desenvolver os personagens; 6) as histórias têm resolução completa, fechando os arcos narrativos e eliminando ambiguidades. Para um maior aprofundamento, ver: BORDWELL, David. “O cinema clássico hollywoodiano: normas e princípios narrativos”. In: RAMOS, Fernão (org.). Teoria contemporânea do cinema 2. São Paulo: Senac, p. 227-301.

[4] As ideias de Buñuel sobre cinema de poesia podem ser conferidas em: BUÑUEL, Luis (1991) “Cinema: instrumento de poesia”. In: XAVIER, Ismail (org.). A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Graal, p. 333-337.

[5] Penso aqui nas ideias sobre o inconsciente – pessoal e coletivo – de Carl Jung. Ver em: JUNG, Carl G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis: Vozes, 2014.

[6]  Rudolf Otto define o sagrado como o “totalmente outro” (ganz Andere), algo que está além da compreensão humana e se revela como uma presença misteriosa. Essa experiência é irracional no sentido de que não pode ser completamente explicada ou compreendida pela lógica ou pelos conceitos. O mysterium tremendum é uma expressão central em sua obra e caracteriza a experiência emocional diante do sagrado. Ver mais em: OTTO, Rudolf. O sagrado. São Leopoldo: Sinodal, 2007.

[7] O debate sobre o Homo sapiens-demens está em Edgar Morin. Morin questiona o paradigma cartesiano, que privilegia a razão e separa o sujeito do objeto, o pensamento da emoção e o humano do não humano, e propõe que a condição humana deve ser entendida em sua totalidade e contradição. Ver, entre outras obras do autor: MORIN, Edgar. El paradigma perdido: ensayo de bioantropologia. Barcelona: Editorial Kairós, 2005.

2 poemas de BIOQUE MESITO

CADUCA

há entre as coisas um desejo insatisfeito
insano destino que chega entre as gentes
o silêncio da pedra que acorda nossa alma
perpétuo ser deslizante às cores cinzentas
não existirá mais nenhuma veloz mudança
nem os discursos entre as línguas insossas
pois o vento de uma tarde inteira sozinho
ou mesmo o fecho de uma mulher na face
poderão conter o fogo que arremessas
dos olhos toda tristeza que guardamos
na frondosa rosa que choca-se ao chão
os perigos de existir não são desfechos
atirados ao relento pelas nossas culpas
ao morrer despimo-nos de toda essência

 

A CASA DAS PRIMEIRAS INVENÇÕES

a minha avó limpando o terreiro
me lembrava a velha da litania
as paisagens mórbidas e sutis
do antigo bairro do sacavém

não sei ao certo o que ela catava
talvez folhas ou inúteis pedregulhos
ficava imaginando aquele mundo
como se as tardes fossem minhas

em seus estampados de chita
dançava sinuosa entre a chuva
segurando as cadeiras na varanda

observava subir entre os telhados
pegando frutos que caíam maduros
sem saber que tudo um dia acabaria

 

Bioque Mesito é poeta, nascido em 3 de fevereiro de 1972. Possui vários prêmios em concursos de poesia em âmbito local, regional e nacional. É autor dos livros de poemas A inconstante órbita dos extremos (Editora Cone Sul-SP, 2001 e com reedição comemorativa aos 20 anos de seu lançamento pela Editora Penalux-SP, 2021); A anticópia dos placebos existenciais (Edfunc-MA, 2008); A desordem das coisas naturais (Editora Penalux-SP, 2018); Odisseia do nada registrado (Editora Penalux-SP, 2020) e Uma estranha maneira de se comparar amanhãs (Editora Penalux-SP, 2021).

2 poemas de TITO LEITE

STRAVINSKY

A vida, ainda que hercúlea,
é estreita: não há iluminuras
sem o extermínio de uma estrela.

Em cada ode, o poeta canta
uma morte: como quem recria
uma semente de alegria
no recreio dos segregados.

Rosa primavera sacrificada.
Queremos o insonhável:
a sagração do juízo inicial.

ANDES

Gosto dos mochileiros
que caminham pelos
Andes com o peso do
mundo em seus diários

vendendo seus artesanatos
baratos quase trocando
por um cigarro

como quem
se torna pombo de praça
ou faz de um origami
uma montanha.

Gosto dos mochileiros
que caminham pelos
Andes carregando outros
mundos em seus olhos

como se o hoje fosse
uma aurora nômade.

Tito Leite nasceu em Aurora (CE) em 1980. É mestre em filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Poeta e ficcionista, é autor dos livros de poemas Digitais do caos (2016, edith), Aurora de Cedro (2019, 7letras) e A palavra em seu deserto (2023, Cloe). Estreou na prosa em 2022 com o romance Dilúvio das almas (Todavia). Jenipapo Western, é o novo romance (2024, Todavia).

AS PERSONAGENS QUE VIVEM…

HERASMO BRAGA

Para Iara…

Não há qualquer segredo ao se afirmar que em grandes narrativas a presença de personagens fortes é evidente, do contrário, diante de personagens fracas não há como viabilizar narrativas relevantes. Foi-se o tempo das abordagens literárias restringirem-se a detectar a presença ou não dos seus elementos principais como espaço, tempo, personagens e, obviamente, o mote da história. E a partir daí promover classificações superficiais. No ponto relacionado às personagens, a pluralidade de análises parte das observações em torno das suas subjetividades e do quanto elas são ou não densas ao ponto de portarem-se para além da narrativa na qual ela se encontra envolvida, de elas exercerem fortes influências em personagens de outros enredos e até mesmo marcarem autores distintos daquele que as concebeu em primeiro momento. Os exemplos são inúmeros, como Dom Quixote, Fausto, Marcel, todavia, os olhares agora estarão voltados para Emma Bovary e Ísis.

As figuras femininas como Emma, que compõe o primoroso romance Madame Bovary de Gustave Flaubert, e Ísis, uma das protagonistas de outra grande narrativa de Raimundo Carrero, Somos pedras que se consomem, exercem pleno fascínio e influência diante daqueles que interagem por meio das suas subjetividades e realizam uma conexão formativa, apicaçando sentimentos guardados e encorajando seus leitores a vivenciar sua plenitude. Ingênuo ainda quem concebe a personagem como algo restrito somente a uma trama, formulada pela imaginação de um autor, e apenas contribui para o desenvolvimento da narrativa. Inicialmente, as melhores personagens são sínteses de sujeitos reais, representados nos pontos mais significativos não só para a história em progresso, como também para o despertar e entendimento dos próprios indivíduos em sua maior intimidade. Assim, não constitui qualquer exagero ou mesmo delírio quando autores consagrados como Mário Vargas Llosa, em entrevistas e produções críticas, sempre eleva Emma Bovary como a personagem cravada em seu ser. Não há dúvida alguma no que se pode denominar de “arquétipo de Emma Bovary” fazer-se presente em inúmeros traços em personagens dos textos ficcionais de Llosa, a exemplo de Lily do seu fascinante romance Travessuras da menina má.

Esse embevecimento ocorre não por mera influência literária ou por mera explicação de estilo. A perpetuação advém pelo “encontro de almas” entre personagem e leitor. Isso sempre foi possível, desde o século IV a.C., quando Aristóteles já apontava em seus estudos sobre a tragédia, condensada em A Poética. Para ele, imitar é algo inerente ao ser humano. Diante disso, não se deve entender no sentido delimitado apenas ao homem enquanto ser real, mas a qualquer elemento que produza representações como as personagens. Em A orgia perpétua: Flaubert e Madame Bovary, em que Mário Vargas Llosa lança aos estudos acerca da escrita de Flaubert, ele se dedica mais na abordagem de Emma Bovary nos mais interessantes pontos que justificam a sua grande e influência não só em outros personagens, como também, em autores como ele. Desta, nas primeiras páginas: “[…] têm a ver com algo que ela e eu temos muito em comum: nosso incurável materialismo, nossa predileção pelos prazeres do corpo sobre os da alma, nosso respeito pelos sentidos e pelo instinto, nossa preferência por esta vida terrena diante de qualquer outra”. Essa convergência em intimidades não advém de mera convenção, mas algo que arrebata em todos aqueles ao perceber as inquietações de Emma em nunca se conformar em apenas reproduzir homogeneidades de vidas oriundas das limitações interioranas em que as subjetividades são suprimidas em prol das estabilidades sociais, mesmo de uma vida superficial, mas aparentemente tranquila. A personagem Emma deseja lançar-se em diversos mundos, ampliar as experiências perceptivas de pessoas, situações, lugares, expandir-se além de Yonville.

Esse desejo inicial desperto de maneira romântica das obras que costumava ler com alvoroço desde tenra idade, serviu como posteriores necessidades, impulsionadas pelos desejos que não lhe permitiam empobrecer-se de experiências e, sim, buscar cada vez mais com intensidade. No mesmo nível de fascínio e pela veemência se encontra em Ísis que “preferia sangrar para não ter que se unir ao tédio e à náusea”, e assim “Eis o que amava: a aventura do mundo”. Ísis, como Llosa, acolhia em Emma o seu “encontro de almas”, não à toa que sempre sugeria aos próximos a leitura de Madame Bovary. Em busca dos prazeres que o mundo oferecia, Emma e Ísis se igualavam, todavia, por serem separadas temporalmente, Ísis ousava mais e pouco caso fazia para as convenções. Destarte, lançava-se a encontros em que a intensidade do momento e o esquecimento deles depois estavam no mesmo átimo. Não poderia ser diferente considerá-la como o narrador faz: “Ísis e a fome sexual dos trópicos, quente e latejante, amada e esquecida…” De fato, “Ísis é uma mulher de muitos prazeres…”. Ísis em nada se submetia, nada a limitava ou a tornava padronizada em características. Ela sempre era muitas em si e para si.

Em sua abordagem, Mário Vargas Llosa dedica a Emma o seguinte: “O heroísmo, a audácia, a prodigalidade, a liberdade são, aparentemente, prerrogativas masculinas; no entanto, Emma descobre que os varões que a rodeiam – Charles, Léon, Rodolphe – se tornam brandos, covardes, medíocres e escravos, apenas ela assume uma atitude “masculina” (a única que lhe permite romper a escravidão a que estão condenadas as pessoas de seu sexo na realidade fictício)”. Se fosse feita a mesma observação para Ísis, em nada mudaria, com base na mesma postura feminina de imposição dos seus desejos, vontades e realizações.

Assim, são personagens como essas que vivem nas subjetividades leitoras e as transformam, diante do despertar para a vida, nos mais diferentes mundos, em prol de experiências que superam as angústias e tédios do cotidiano hodierno.

Herasmo Braga é professor e ensaísta

INTEMPESTIVA, de GISELLE VIANNA

ADRIANO LOBÃO ARAGÃO

Teu passado / nada pode contra / o abraço que te aguarda”. Esses versos fazem parte de Repente, poema que abre o livro Intempestiva (São Paulo: Patuá, 2023), de Giselle Vianna. Mais que a oposição entre passado e futuro, a obra de Giselle oscila entre as marcas de agressão e a força da esperança e suas correspondências, abordando contrastes e tensões sem recair num maniqueísmo reducionista, extraindo versos líricos da aridez da existência.

Giselle Vianna nasceu em Campinas, São Paulo, em 1981. Formada em Direito e doutora em Sociologia, realiza pesquisas sobre trabalho escravo contemporâneo e, como voluntária do Instituto Uno, atua na alfabetização de crianças e adolescentes em situação de acolhimento na cidade de São Paulo. Suas obras anteriores, Pau-Rodado (2016) e Eclíptica: poemas venezianos (2019), remetem a um período de estadia e pesquisa no Estado do Mato Grosso e em Veneza, respectivamente.

E agora, a autora nos apresenta Intempestiva. Composta por poemas escritos entre 2016 e 2022, reflete as tensões e conflitos vivenciados no período mencionado, desde a situação político-social à angústia de cunho privado, e a partir desse manancial de violências e resistências emerge uma obra bem construída, em que os temas ainda que possam variar ao longo das páginas, mantêm um encadeamento que, juntamente com a dicção poética da autora, contribui para a coesão ao longo de todo o livro. Por diversas vezes, encontramos versos de poemas distintos que parecem dialogar entre si e até se complementarem num possível único poema. Como exemplo, os versos que se inscrevem na última página, acima do colofão: “no escuro da noite / que trama a paz e a guerra / uma criança chora / e alguém, em vigília, / protege a primavera”, que poderiam se relacionar aos seguintes versos: “algo / relampeja / no inverno de teus olhos” (A tempo, p.79) / “não é preciso / verter a lágrima / ou levantar a mão / num aceno / […] / meu vento, / como todo vento, / soprará” (No ar, p. 107) / “algo em mim / saberá distinguir / as ideias lavradas / das ideias daninhas” (Identificação botânica, p.13).

É nesse exercício de aproximação de opostos que se desenvolve boa parte da poética de Giselle Vianna. No entanto, além do exercício de contrastes e metáforas, sua poesia também se volta para a realidade crua e agressiva, para a necessidade de resistir, denunciar, gritar, como na sequência dos poemas Bem guardado, Covardia, Dark room, Violação e Dessalga, na qual encontramos os seguintes versos: “as almas mal se tocam / e os traumas já se roçam / como dois ossos” (Dark room, p.23); “foi percorrendo à força / minhas pernas / minhas coxas / foi me puxando com carinho / pra perto da culpa” (Violação, p.25); “não sei em que mar / vai desaguar / a minha dor cansada” (Dessalga, p.27). Em seguida, temos o poema sem título que se inicia com o verso “todo grito”, bastante significativo, pois a obra de Giselle bem se adequa a esse aspecto: uma reação em forma de poesia ante as asperezas e violências da vida, pois, afinal, “todo grito / procura um ouvido / para virar palavra” (p.29).

Adriano Lobão Aragão é autor de Destinerário (poemas e fotografias), dentre outros. www.adrianolobao.com.br

AS PERSONAGENS E OS LIVROS

HERASMO BRAGA

Quem realiza leituras sabe quão transformador é o seu valor, tanto da parte de quem lê, como dos que apenas as contemplam. Mesmo quando limitada a textos meramente informativos, a leitura em algum momento provocará desconforto e um mínimo de estranheza diante da realidade. Essa percepção pode ser constatada não apenas nos indivíduos, mas também nos personagens leitores. Isso ocorre por conta das mudanças das subjetividades tanto nos sujeitos reais quanto nos ficcionais.

Reconhece-se que a ação que mais o ser humano realiza está relacionada diretamente com a interpretação. Ao se relacionar, observar, sentir, pensar, projetar, a atividade interpretativa estará não só vigente, como também acontecendo o tempo todo. Diante desse aspecto, ao atentar-se para a imprescindibilidade interpretativa do ser humano, deve-se autoquestionar acerca da qualidade dela. Dessa forma, está diretamente associada, ou seja, quanto melhor e maior for a qualidade de interpretação do sujeito, consequentemente, a vida dele acompanhará esses passos somativos. No sentido contrário, também; a precariedade de viver será a tônica. Isso ocorre pelo fato de a capacidade interpretativa estar vinculada à subjetividade dos seres. Quanto mais significativa for a interpretação, maior será a expansão das subjetividades, e, portanto, os ganhos valorativos.

O elo que une os pontos entre qualidade interpretativa, vida e subjetividades reside na expressividade dos textos literários. Aqueles dotados de maior profundidade de expressão irão promover as distensões interpretativas e ampliação de subjetividades. Essa tese pode ser demonstrável sem dificuldades nos próprios ganhos que as personagens recebem nas suas subjetividades e as transformam em meio as suas vidas ficcionais. Ao se destacar os olhos de ressaca de Capitu, importa evidenciar, como descrito pelo próprio Bentinho, o quanto ela fora uma grande leitora na infância e adolescência. Da mesma maneira, outra personagem marcante da literatura, Emma Bovary, que, ao não aceitar ter uma vida burocrática ao lado do seu marido Charles ou Carlos, a depender da tradução, desenvolve essa renúncia de ser mulher submissa, entregue apenas às questões do lar e da criação de filhos, as leituras que constantemente realizava e mesmo sendo de romances idealizados com níveis de superficialidades, despertava-lhe a sede de viver aquela intensidade de sentimentos que ele encontrava nos livros, ampliando os efeitos imaginativos. Com base nesses registros, consegue-se entender quando Leyla Perrone-Moisés, em um dos seus textos denominado “Ensino de Literatura”, enuncia entre outras coisas que: “a literatura é um instrumento de conhecimento do outro e de autoconhecimento, porque a ficção, ao mesmo tempo em que ilumina a realidade, mostra que outras realidades são possíveis”. Essas são algumas das chaves das potencialidades e riquezas na ação efetiva de conhecer o outro, ao tempo que se autoconhece, diante de uma realidade mediada pelo texto ficcional, ilumina não só uma dada realidade, mas diversas outras possíveis como deveras percebeu Capitu ao ser tão enigmática para Bentinho, e Emma tão ousada no enfrentamento de toda uma sociedade moralista de plena limitação dos desejos femininos.

Outro personagem que goza de formação cultural diferenciada e, a partir da leitura de uma obra, disponibiliza-se a ter o que antes seria apenas ideias e agora sente a coragem de exercer uma vida plena hedonista é Dorian Gray, personagem do romance de Oscar Wilde, O Retrato de Dorian Gray. Diante da história lida em que admira o personagem: “O herói, o magnífico jovem parisiense em quem os temperamentos romântico e científico se mesclavam de modo estranho, tornou-se para ele uma espécie de protótipo de si mesmo. E, de fato, o livro todo parecia conter a história de sua própria vida, escrita antes que ele a tivesse vivido”. Destarte, Dorian tomado pelo impulso motivador, transforma-se radicalmente ao ponto de também ter todas as vivências possíveis, como de fato, efetivou. E como descreve o narrador: “Durante anos Dorian Gray não conseguiu se livrar da influência do livro. Ou talvez fosse mais apropriado dizer que ele nunca tentou se livrar dela”. Esse despertar e transformação de vida de Dorian Gray demonstra a vitalidade de como a leitura incide sobre as subjetividades dos sujeitos, muitas vezes, quando se é permitido, de maneira arrebatadora, proporcionando novas formas de vivências antes experenciadas nas leituras, assimiladas nas subjetividades e depois por meio das ações reconfiguradas, como expressa Paul Ricoeur em sua abordagem sobre mimeses III, que elevam a novas formas de vida antes restritas nas leituras agora investidas em suas vidas. Sejam das personagens, sejam dos seres reais.

Essa incursão inquietante, quando em meio às narrativas se deparam com narradores ficcionais, lançarem-se em despertar promovido por personagens, significa muito mais do que apenas uma revelação da complexidade e amplitude que os textos ficcionais provocam. Observa-se nas passagens de No Caminho de Shaww, de Marcel Proust, a seguinte menção em torno dessas assertivas: “Depois desta crença central que, durante a leitura, executava movimentos incessantes de dentro para fora, no sentido da descoberta da verdade, vinham as emoções que me dava a ação na qual tomava parte, pois as tardes eram mais cheias de acontecimentos dramáticos do que, muitas vezes, uma vida inteira. Eram os acontecimentos que ocorriam no livro que estava lendo; é verdade que as personagens a quem interessavam não eram ‘reais’, como dizia Françoise. Mas todos os sentimentos que nos fazem experimentar a alegria ou a desgraça de uma personagem real só ocorrem em nós por intermédio de uma imagem dessa alegria ou dessa desgraça; a engenhosidade do primeiro romancista consistiu em compreender que, no aparelho das nossas emoções, sendo a imagem o único elemento essencial, a simplificação que consistiria em suprimir pura e simplesmente as personagens reais seria um aperfeiçoamento decisivo. Um ser real, por mais profundamente que simpatizemos com ele, em grande parte só o percebemos através dos sentidos, isto é, permanece opaco para nós, oferece um peso morto que nossa sensibilidade não consegue erguer”. Esse olhar diferenciado a partir do olhar da personagem que sofre modificações e vivencia experiências por meio de outras personagens das histórias que ele lê e por meio da sua elevação, também, os sujeitos leitores que se encontram em orientação desse olhar proporcionalmente alçam suas performances perceptivas. Tensões emocionais sentidas nas leituras, muito mais do que em inúmeras vidas inteiras, são modificadoras do sujeito leitor, personagem da intriga e também do sujeito leitor real. Aguçam-se as sensações e se distanciam das limitações e superficialidades da vida comum, preenchendo o que é desprovido de vida, recheando de intensidades formativas que elencam o espírito.

Interessante que essa dimensionalidade de ampliação do espírito pelo exercício do desenvolvimento formativo, acontece, conforme Goethe em Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, porque lançar-se no mundo ficcional, como bem expressa até então conhecido personagem eclesiástico em diálogo com Wilhelm, “é o melhor meio de arrancar os homens de si mesmos e trazê-los de volta por um desvio”. Então, é sair do mundo ordinário e imergir em outro das personagens que se encontram diante dos olhos e lhes tocam o espírito. Em momento posterior, Wilhelm Meister, ao refletir sobre o ganho significativo dessa jornada constitutiva, expressa-se ao amigo e agora cunhado Werner, em uma carta acerca dessa constante busca formativa por meio das experiências, principalmente as despertadas e vivenciadas ficcionalmente como nas peças teatrais e textos poéticos aos quais ele se dedica inteiramente nas leituras: “Para dizer-te em uma palavra: formar-me a mim mesmo, tal como sou, tem sido obscuramente meu desejo e minha intenção, desde a infância. Ainda conservo essa disposição, com a diferença de que agora vislumbro com mais clareza os meios que me permitirão realizá-los. Tenho visto mais mundo que tu crês, e dele me tenho servido melhor que tu imaginas”. Destarte, nas confluências dos olhares entre leitor e personagens, personagens leitores acerca de seus personagens, são elaboradas e reelaboradas formas e concepções transformadoras tanto dos personagens em seus enredos, quanto dos sujeitos leitores, e ambos se desenvolvem e se diferenciam nas suas subjetividades no mundo da coexistência entre ficção e realidade.

Como bem enuncia Antonio Candido em sua obra Textos de Intervenção, que a literatura “exprime o homem e depois atua na própria formação do homem”. Assim, diante dessas circularidades formativas entre leitores e personagens, percebe-se a clareza da afirmação de Candido.

Herasmo Braga é professor e ensaísta