OUTONO DE CARNE ESTRANHA, de AIRTON SOUZA

ADRIANO LOBÃO ARAGÃO

Subindo as adeus-mamãe, o esforço era tão grande que os garimpeiros, a despeito de suas aparências, já não conseguiam distinguir entre a esperança de bamburrar e o lameiro da cava descendo por seus corpos.” (Cap. 10, p 113) No garimpo de Serra Pelada, na década de 1980, chamavam de adeus-mamãe as imensas e precárias escadas utilizadas para retirar dos barrancos inúmeros sacos de terra e lama, atividade exercida pelos “formigas”. “Arrumou com jeito o saco de cascalhos no ombro e caminhou rumo às adeus-mamãe. Foi subindo as escadas com a crescente vontade de gritar de dor.” (Cap. 6, p 78) Não havia nenhum tipo de segurança e o trabalho era efetuado sob jornadas perigosas e exaustivas. Eram comuns os deslizamentos e desmoronamentos, além do contato contínuo com substâncias tóxicas, como o mercúrio, utilizadas no garimpo.

Já o termo bamburrar remetia à descoberta de alguma pepita de ouro, esperança de riqueza e objetivo maior de todas aquelas pessoas que arriscavam suas vidas na Serra Pelada. “Ao falar bamburrar, a paisagem dentro da boca desadormecia e era como se cada letra daquele nome pesasse todos os vocábulos impossíveis dentro da beleza. […] Bamburrar não era vocábulo. Era horizonte ternurado.” (Cap. 5, p. 61-62) “Bamburrar era a febre terçã para a qual não havia cura nas carnes dos garimpeiros” (Cap. 5, p. 62).

Vencedor do Prêmio Sesc de Literatura de 2023, e lançado pela Editora Record no ano seguinte, Outono de carne estranha, romance de Airton Souza, ao longo de seus 17 capítulos, acompanha as angústias e esperanças de um punhado de garimpeiros em busca de arrancar do chão do garimpo alguma riqueza que lhes traga melhores condições de vida, para além da própria subsistência, tendo como foco o difícil ambiente de dois garimpeiros envolvidos num relacionamento amoroso homoafetivo na Serra Pelada, no início da década de 1980. “Os dois homens, nuzinhos, trancados no único cômodo do barraco de Zuza, tentavam, de qualquer maneira, atravessar os fonemas das palavras bateia e bamburro, abraçadas, diariamente, às carnes deles.” (Cap. 1, p 14)

Durante 12 anos de atividade, entre 1980, após a descoberta de ouro na Fazenda Três Barras, até 1992, quando foi oficialmente fechada pelo governo brasileiro, o garimpo em Serra Pelada mobilizou mais de 100 mil trabalhadores, provenientes de todas as regiões do país, sobretudo do Norte e Nordeste. Somente nos primeiros meses, mais de 4 mil pessoas já haviam se deslocado para a região. Localizada no estado do Pará, próximo a Marabá, na Serra dos Carajás, estima-se que cerca de 40 mil toneladas de ouro tenham sido extraídas dos 24 mil metros quadrados disponíveis para o garimpo.

Os barrancos, inicialmente, eram disputados diretamente pelos garimpeiros, mas, ainda no início da década de 1980, ocorreu a intervenção do governo federal, tendo como figura central Sebastião Curió Rodrigues de Moura, o Major Curió, interventor nomeado pelo então presidente João Figueiredo, para administrar o garimpo, incluindo a venda do ouro, que deveria ser feita exclusivamente nos guichês da Caixa Econômica Federal instalados na região.

A história de Manel e Zuza, narrada em Outono de Carne estranha, se desenvolve quando os barrancos do garimpo de Serra Pelada já estavam divididos em diferentes lotes e submetidos a toda uma hierarquia de trabalho e poder, concentrada na figura do personagem marechal e seus capangas, os bate-paus. Observa-se o uso de maiúsculas em alguns nomes próprios e em outros não. Entendi como um efeito significativo, despersonificando palavras como brasília e deus, mas mantendo as maiúsculas das palavras referentes à realidade imediata, como os nomes dos rios e cidades próximas. Em conversa com o autor, Airton me relatou que “a ideia foi diminuir em nós os significados históricos desses lugares e personas. E em contrapartida lançar luzes sobre a região. Invertendo a escala de valores, como modo de vingança em relação a quem nos menosprezou historicamente.

Além de Manel e Zuza, o personagem Zacarias, padre que deixa a batina para dedicar-se ao grimpo, se torna mais uma figura protagonista na obra. No entanto, seu perfil complexo e ambíguo poderia ser mais explorado. Nesse sentido, ficaram algumas lacunas que poderiam ser mais desenvolvidas. Mas é possível que a autor tenha preferido não focar demais em Zacarias para não correr o risco de deixar Zuza e Manel em segundo plano. Porém, Zuza também careceu de maior tratamento. Pouco sabemos de seu passado e de como se deu sua passagem pelo garimpo de Serra Pelada.

Ainda que tenha sido tema de obras cinematográficas, como Serra Pelada, filme dirigido por Heitor Dhalia, em 2013, e estrelado por Júlio Andrade e Juliano Cazarré; Os Trapalhões na Serra Pelada, dirigido por J.B. Tanko, em 1982, e estrelado pelo grupo humorístico Os Trapalhões, além de Louise Cardoso e Gracindo Júnior; bem como o documentário Serra Pelada: A lenda da montanha de ouro, de Victor Lopes, realizado em 2013, pelo tempo em que permaneceu em atividade, pela quantidade de pessoas envolvidas no sonho de bamburrar, pelas dimensões e volume de ouro extraído, é curioso que poucas obras que abordam a Serra Pelada sejam conhecidas do grande público. E nesse sentido, Outono de carne estranha acrescenta uma instigante narrativa a essa lista.

Airton Souza nasceu em Marabá, Pará, no ano de 1982. Apesar de Outono de carne estranha ser sua estreia no romance, o autor se dedica à literatura há bastante tempo, já tendo mais de 40 livros publicados, em diversos gêneros, sobretudo poesia.

Prêmio Sesc de Literatura, finalista do Prêmio São Paulo, na categoria romance de estreia, finalista do prêmio Oceanos, Outono de carne estranha empreendeu uma excelente jornada entre relevantes prêmios e concursos, mas proveio justamente do Sesc, mantenedor do concurso que culminou com a publicação da obra, uma polêmica envolvendo o livro.

Durante a Flip, Festa Literária Internacional de Paraty, a leitura de Airton do trecho de abertura de seu livro provocou desconforto entre dirigentes do departamento nacional do Sesc, presentes no evento: “Quanto mais socava a pica no cu de Zuza, mais Manel escutava o barulho das picaretas. Dos enxadecos. Das mãos repletas de calos. Das velhas enxadas enferrujadas. Dos pedaços de paus. Das bateias roçando levemente sobre a água. Das pás afundando no chão amarelado dos barrancos e dos paredões, quase acinzentados de terra, que formava a cava” (Cap.1, p. 11). O próprio registo em vídeo do momento foi, dias depois, excluído das páginas de divulgação e registro do evento.

Em resenha publicada na revista Quatro Cinco Um, Renan Quinalha levanta os seguintes questionamentos: “Temos um número cada vez mais significativo de obras literárias que atravessam ou incorporam o universo LGBTQIA+, seja por seus autores e autoras, seja pelas personagens e tramas. Mas será que estamos garantindo essa liberdade apenas quando há uma higienização dessas histórias? Só aceitamos e promovemos quando notamos que o sexual se converteu em afeto, mais fácil de digerir? Só toleramos se os arranjos de desejo se submetem à estrutura tradicional da família patriarcal e da heteronormatividade?

O fato é que tal situação enfrentada pelo autor chegou a culminar na demissão de Henrique Rodrigues, criador e coordenador do Prêmio Sesc, configurando Outono de carne estranha como mais um capítulo nesse enredo de intolerância e puritanismo que caracteriza uma sociedade preconceituosa.

Em tempo, o garimpo em Serra Pelada modificou totalmente a paisagem natural, restando somente uma gigantesca cratera na qual se formou um lago com cerca de 200 metros de profundidade. “O que antes era uma montanha, enchia agora o horizonte de vazio e crueldade.” (Cap. 3, p 36)

 

Referências

QUINALHA, Renan. Amores brutos. Quatro Cinco Um. Disponível em: https://quatrocincoum.com.br/colunas/livros-e-livres/amores-brutos/ Acesso em 20 set. 2024

SAYURI, Juliana. Como foi o garimpo em Serra Pelada? Superinteressante, 04 jul. 2018. Disponível em: https://super.abril.com.br/mundo-estranho/como-foi-o-garimpo-em-serra-pelada/

SOUZA, Airton. Outono de carne estranha. Rio de Janeiro: Record, 2023.

SOUZA, Airton. Depoimento concedido a Adriano Lobão Aragão. 19 set. 2024.

Adriano Lobão Aragão é autor de Destinerário (poemas e fotografias), dentre outros. www.adrianolobao.com.br

FEITO A IMAGEM E SEMELHANÇA

AIRTON SOUZA

feito a imagem e semelhança
dos que têm fome e presságios
ícaro cartografa na palma das mãos
os pronomes que semeiam as palavras:
terra e amor

sozinho faz atravessar, entre os próprios dentes,
o sentido uníssono das paisagens
que agora acreditam mais na infância
do que na silhueta perpendicular de deus

ícaro esquece as orações antes da guerra
porque sabe que os homens, ainda atávicos,
preferem pincelar ausências e tragédias
ou bordar no peito o peso dos ossos
quando estão distantes da tarefa de anunciar horizontes

tingido pela nudez das vozes
de mulheres, crianças e anciãs assassinadas
o corpo de ícaro sonha todos os dias
como conseguir terminar o único vocabulário
capaz de acordar as auroras
& fazer do escuro uma legenda sem desertos.

as confissões de ícaro não fabricam hemisférios
elas derramam o artifício de janelas
dentro dos olhos dos que morrem
antes de compreender a angústia dos arbustos
dos que perdem a noção das bugavílias
dos que amanhã, dentro da consumação do azul,
esquecem para sempre a retórica dos biombos
ou dos que sabem mais de abandonos e desgraças
do que de deus, ternura e estrelas

por não conseguir equilibrar uma pátria na língua
ícaro faz demorar em sua garganta
a tristeza dicionarizada pelos vaga-lumes
e isso o deixa sem saber abrir
a urgência mineral da dormência dos pássaros
o deixa caminhar longe dos pentecostes
e com a boca fedendo a hospício
as asas de ícaro repetem sem parar:
“deus não sabe imitar a efemeridade das árvores”

por vezes, ícaro tem vontade de ter um útero
só para chegar mais perto da primavera
& sem vírgula no próprio crânio,
ainda temerário, ter forças para gritar:
“nem deus, nem as mariposas estão consumadas!”

amputado pela anatomia do país
ícaro se engasga de quintais e pântanos
mas, interminável, germina outro amanhecer
onde deveria morrer os carrascos
onde deveria nascer a dimensão dos milagres
a ferrugem das sementes incendiadas de saudade
ou os estilhaços dos portos sem memória

para ícaro o último rosto da varanda
não esconde os sussurros inconsoláveis das águas
a inclinação dissipada das preces
o rubro das planícies negadas por deus
a relva abraçada de túmulos e a imaculação
o cheiro improvável e entreaberto dos suicidas
a aflição das mãos derrotadas pelas igrejas

amputado pelos ruídos das neblinas
ícaro batiza outras liturgias
na carne florescidas no rosto dos peregrinos
faz ressoar minúsculas sodomas quase vazias
nas retinas de homens que apertam gatilhos
pensando que é possível tingir o próprio filho
com ilhas e bangalôs

só ícaro sabe ampliar o sal dos séculos
na língua latifundiária dos assassinos.

ícaro sonha com casas, falésias e as últimas chuvas
porque não aprendeu a gênese da carne
há dias em que ele atravessa com dedos côncavos
a vociferação capaz de envelhecer os rios
tentando acordar as primeiras camadas das reticências
em outros perdoa os atlânticos ancorados
dentro dos corações dos mendigos
ou mesmo assim devota o sétimo dia na fome dos peixes

para enterrar uma procissão de hectares
que jamais dariam conta de multiplicar o idioma
em que a horizontalidade cândida de deus
ressuscita arquipélagos caligrafados amanhã
pela agonia das libélulas
ícaro sonha com mapas, amapolas e as primeiras obliquidades

ainda nu de retrato e contínuos holocaustos
& como se fosse preciso atravessar
todos os relevos caiados de indelicadezas
ícaro encharca as pálpebras com paredes
traz das catástrofes pronunciadas primaveras sem cheiros
para alimentar outra vegetação nas bocas das mães
que morrem sem aprender a devorar:
o lado mais obscuro de deus
a parte menos azul do assombro
os nomes soerguidos por deuteronômio
as antigas lembranças molhadas pelos cabelos

tanto a mãe que morre quanto ícaro
sonham com o abstrato amor esquecido
pela amplidão muda deixada pelo sudário de cristo.


Airton Souza [Marabá/PA, 1982] é poeta, professor e pesquisador. É doutorando no Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Cultura e Amazônia, pela Universidade Federal do Pará e Mestre em Letras, pela Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará. Já publicou 43 livros e já participou e mais de 100 antologias.