2 poemas de SÍLVIA SAES

A FLORICULTURA

a porta abre para o ar condicionado de uma galeria com folhagens
e flores ordenadas em estantes de vidro dos dois lados

aquele não-sei-quê que sempre se busca, aquele vivo frescor
das flores, ali não deixou rastro

na floricultura nada se mexe ondeia ou esvoaça, tudo jaz em
cor estagnada

ao fundo atrás da bancada de xaxins e buquês embalados,
o dono da loja completa o quadro:

luz fria sobre as faces pálidas, seu corpo é vulto extenuado no
chumaço de um tempo sombrio

não é dia nem noite, na floricultura tudo mergulha em
comprida madrugada

as rosas exalam a fragrância dos velórios

o dono da floricultura, insepulto das horas, planeja enterrar-se
nas pétalas antes da aurora

GOTAS

colecionarei gotas
fixarei seu mágico e rotundo brilho
quando não cabem mais em si
tão preenchidas de si mesmas
no indevassável núcleo
onde sorvem o vácuo
em vertiginoso giro
antes de escorrerem pelo vidro embaçado do box
gotas infensas ao fio das facas
saboreio o nome: gota
e penso nas espécies de gotas
de chuva, de suor, de sangue
de orvalho sobre as gotas de lágrimas
gotas do tempo no soro do conta-gotas
inesperados declives na curva
dos lábios
a menor parte da gota é gota
uma gota abraça todas as outras dentro dela
cada gota é uma boca
cada instante uma face
quantas bocas falam pela sua boca
quantas pernas andam pelas suas pernas
quantos olhos veem pelos seus olhos
e você some em espiral profunda
antes que eu alcance a pergunta
que suas mãos me fazem
colecionarei gotas
antes que partam as embarcações
sob a chuva fina
o que me ocupa tem asas
o que me ocupa tem pés
o meu corpo tem um corpo
que não cabe
tenho mãos que agem
dentro das mãos
quantas mãos se escondem nas asas
os peixes saltam das margens
das gotas
quantos bichos estão na minha carne
quantos nela esperam ofegantes
o próximo salto
quantos corpos no meu corpo
quanto do meu corpo no seu
pássaros inquietos percorrem
meu sangue
quantas gotas de mel
abrem as comportas
do seu nome


Sílvia Faustino de Assis Saes é professora de Filosofia na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia (FFCH-UFBA), autora de livros e artigos sobre Filosofia da Linguagem e Estética. Notas totais sobre partículas é o seu primeiro livro de poesia.

2 poemas de SAMUEL MARINHO

OBSOLESCÊNCIA PROGRAMADA

escrevo no meu caderno
só pra tatear a página ao lado
o destino de todo moderno
é ser ultra
passado

HIERÓGLIFOS DO FUTURO

A forma das cidades muda mais rápido,
bem mais, que um coração mortal
Baudelaire, “O Cisne”

eis aqui
gravado em alguma parte
a primeira metade da arte
o transitório
o contingente
o ilusório
a efêmera
ultramodernidade
(o que para alguns seria
mero objeto de descarte)

a outra metade
a meta da arte
o imutável
o absoluto
o infindável
a glória
a encantar-te
não caberia sequer
no segundo encarte

é desde a antiguidade
uma questão
de vida ou morte

luta corporal incessante
de reter o poético no histórico
de extrair o perene do instante

o que os antigos modernos
chamariam de eternidade

Samuel Marinho (São Luís/MA, 1979) é poeta, autor dos livros Pequenos poemas sobre
grandes amores (2002), Poemas in outdoors (2018), Poemas de última geração
(2019, finalista do Prêmio Jabuti de 2020), Fotografias para perfis fakes (2021) e
Antiquário Moderno (2023). Os poemas selecionados são do livro Antiquário Moderno (Penalux, 2023).

2 poemas de HERMES COÊLHO

.

não houve resgate quando fui violado
as escaras da alma não pude curar
deixei-me deitar no campo de sonhos
refugiei-me neles sequei o pranto
cipó que usei para me salvar
a cada quimera desfeita eu descia um pouco
rumo à floresta densa pavores turvos
e descobri um novo mundo
no meio da fauna e flora multicolor
vivi amores calei rumores me permiti
dancei com indígenas nus na aldeia
fiz amor com botos sob a lua cheia
transformei minha dor em frenesi

a seca da cidade é meu lençol
envolve a pele em ondas
cicatriza as feridas da labuta
e dos esforços ocos dos dias
aceito o açoite do cerrado
deixo meu corpo marcado
alma vagando vazia

Hermes Coêlho nasceu em Teresina, Piauí, em 1977. Reporter e editor da TV Senado, em Brasília. Autor de Nu (poemas, 2002) e Violado (2023, poemas). Os poemas aqui publicados fazem parte do livro Violado (Editora Patuá).