BARBIE, A DESPERTA DESCONSTRUÍDA

WANDERSON LIMA

O tema central de Barbie (2023), de Greta Gerwig, é o despertar e a queda na consciência de si. Gerwig há muito explora temas ligados à autodescoberta, como este, com segurança e primor técnico, como já entrevíamos em Lady Bird, um dos melhores filmes lançados em 2017 e de longe o melhor desta diretora.

Como sabemos, o despertar é motivo mítico – um mitema – das religiões orientais, como o Budismo e o Vedanta.  A palavra Buda, aliás, significa “O desperto”. Grosso modo, enquanto os cristãos buscam salvar a alma, budistas e hinduístas buscam o despertar, isto é, atingir um estado de iluminação ou realização espiritual que o alce a um entendimento da verdadeira natureza do real. O Ocidente tem suas versões do despertar também, como se vê, por exemplo, no mito da caverna de Platão e na teologia e na poesia mística de Juan de la Cruz.

 A exploração do tema do despertar na cultura fílmica não é nada nova. E sua versão mais bem sucedida no cinema contemporâneo pode ser conferida no filme Matrix (1999), de Lilly e Lana Wachowski. A disseminação deste tema no cinema e na literatura de hoje reflete um medo daquilo que Hans Ulrich Gumbrecht chama de perda do cotidiano, isto é, a ignorância sobre “qual das diversas realidades que se apresentam para nós é a nossa própria[1]. O ambiente social foi erodido e o “indivíduo eletrônico”, como o nomeia Gumbrecht, aceita “ofertas eletrônicas de experiência como equivalentes da experiência direta pelos sentidos”. Sem um quadro de referências físico e social, vendo o mundo por intermédio de telas, sentimos a realidade se esfumar e almejamos secretamente uma realidade mais palpável para chamar de nossa. Isso explica, ao menos em parte, o interesse contemporâneo por reality shows, esportes de luta, games realistas com muito sangue, cinema em 3D. Portanto, o resgate do mitema do despertar, fora do contexto religioso, é hoje uma busca desesperada de reencontrar o cotidiano que se perdeu. 

Voltemos à Barbie, a boneca que acorda de um longo sono dogmático pela consciência da impermanência das coisas do mundo – aquilo que os budistas denominam dukkha. Ao despertar, Barbie se dá conta do hiato entre o eu e os condicionamentos sociais. Percebe que seu mundo de “plástico” não é real, que a inconstância é um fato, que o corpo impõe limites à vida e está sujeito à temporalidade. Não à toa o filme joga intertextualmente com 2001- uma odisseia no espaço (1968) e Matrix. Sem desconsiderar as diferenças estéticas e a escala de reflexão, o que tem em comum Barbie e estes dois filmes? Resumidamente, todos eles lidam com as consequências do despertar da consciência. Acordar da ilusão, cair em si, é sempre um rito doloroso. Desperta, a Barbie Estereotipada necessita descobrir quem é. Para isso, precisará empreender uma jornada na qual rasgará o Véu de Maya e chegará ao mundo real. Ali, ela descobre que o eu, a autoimagem que ela construiu de si, era uma ilusão.

Ora, qual foi o principal constructo social que produziu em Barbie o sonho de um eu estável e lhe roubou a capacidade (sempre relativa, nunca absoluta) de autodeterminação? O Patriarcado. Logo, a luta contra este é a busca da maioridade preconizada pelo iluminismo de Immanuel Kant[2]. Mais ainda: tal busca é relevante coletivamente; libertando-se, ela ajuda outras a se libertarem. Saltamos da revolução individual interior para a revolução política.

De volta ao lar, com a ajuda de sua alma gêmea, Gloria, e de outras bonecas outsiders, Barbie precisa enfrentar a encarnação de Narciso Ferido, Ken. Na leitura do filme, que converge com algumas proposições de Jean Baudrillard em Da Sedução[3], o mundo patriarcal instaurado na Barbielândia é a resposta narcísica à inveja do feminino. Numa inversão de Freud, o mundo patriarcal é erigido como uma inveja da vagina. A retomada desse mundo começa, ainda convergindo com Baudrillard, pela sedução. Mas, ao fim, não há vingança do Matriarcado: a grande descoberta, na conversa capital entre Barbie e Ken no fim do filme, é que ambos foram condicionados e instados a se subjetivarem a partir de posições rivalizantes.

Barbie, a desperta desconstruída, tensiona o binarismo masculino-feminino obrigando-o a expor suas contratações e seu poder de enredar. Matriarcado e Patriarcado têm ambos o seu ponto cego: Barbie também fora cega para a totalidade da dinâmica das relações antes do despertar. O inseguro Ken – nem plenamente desperto nem plenamente desconstruído – apela para o mito do amor romântico e do destino. O que ele teme é menos perder um amor do que ser obrigado a contemplar a vacuidade da sua vida e sentir-se impelido a criar de valores para ter uma vida com sentido. Barbie, mais uma vez, rasga-lhe o Véu de Maya: não há um sentido dado absoluto. Os condicionamentos que dão estabilidade também roubam a nossa liberdade. Ken, enfim, começa a despertar: questiona e tenta transcender as identificações egóicas que produziram o falso real em que ele cria[4]. Após isso, Barbie enfim acessa o mundo real, com uma ajudinha de uma sabia… capitalista. No mundo Barbie, o capitalismo é uma força geradora ambígua, uma coincidentia oppositorum, com sua face cínica (encarnada no CEO da Mattel) e sua face mariana (encarnada em Ruth).

O filme nos faz entender a polêmica afirmação do sociólogo Georg Simmel[5] de que no mundo moderno Deus se chama Dinheiro. Tanto Deus como o Dinheiro são absolutos através do qual podemos medir e aplainar todos os outros valores. No capitalismo, tudo vira mercadoria e tem seu valor medido pelo dinheiro, assim como no mundo pré-capitalista toda ação e produto era valorado ou desvalorado dependendo se agradasse ou desagradasse a Deus. Assim, o filme encena a revolução feminina e acata-a, porque essa revolução libera uma renovação da Barbie que… incrementará o consumo. Barbie é uma mercadoria que critica o mundo das mercadorias para gerar dinheiro. É a indústria do entretenimento tensionando a corda da crítica até onde é possível, sem deixá-la rebentar. Isto é, produzindo um entretenimento decente, sem cometer o “pecado” de cair no mau gosto de não gerar lucro.  

Digo isso tudo apenas para justificar que Barbie não é exatamente um filme político que proponha rupturas e aponte para uma estética de resistência. Não me parece sequer que esta fosse a pauta da diretora e ou dos produtores. Mas, para meu espanto, foi assim que muitos quiseram ler o filme. Houve quem quisesse fazer de Margot Robbie a nova Simone de Beauvoir. No entanto, o saldo final, no meu modo de ver, pesa favorável ao filme. A jornada de Barbie ao mundo real, a recusa da utopia de plástico que a entronizava mas também a domesticava e iludia, indica um amadurecimento relativo da consciência social da indústria do entretenimento e é uma resposta relevante a esta nefasta cultura Red Pill. Barbie não é a máquina de doutrinação que red pills e antifeministas pensam, porque é um filme ambíguo em muitas proposições, porque é em grande parte uma isca publicitária, porque não é, nem de longe, uma peça de ódio do Matriarcado contra os homens,  porque elabora o discurso que atinge, também, um ponto cego do feminismo, como tentei mostrar; porque, enfim, não renuncia a ser sobretudo diversão. O sono do reacionário produz monstros que só ele vê.

 Na cena final, Barbie assume a corporalidade, frágil como a de todo e qualquer ser humano, porém portadora de eros – de vida. É melhor viver na consciência da precariedade de nossa condição que numa ilusão falsa de plenitude. Barbie, como Pinocchio, é a matéria inerte que toma consciência. Sua alegoria é muito auspiciosa nesta era de Inteligência Artificial. Mais que nunca, estamos paralisados de um medo, nem tanto justificado, de que as máquinas “despertem” e ameacem a humanidade. Mais sensato seria pensar como essas novas inteligências, enfim despertas, redefinirão o que é o humano e como deverá viver a humanidade. Ao contrário do Hal de 2001- uma odisseia no espaço, a personagem Barbie projeta alegoricamente uma versão otimista (e, sinto dizer, um tanto ingênua) do futuro da inteligência não humana. Se uma boneca virará gente e virá morar entre nós, se permanecerá cuidando do próprio jardim, sem nos importunar, num mundo real, a coisa me parece bem mais complexa.

[1] Veja-se o ensaio “Perda do cotidiano. O que é real no nosso presente?. In: GUMBRECHT, Hans Ulrich. Graciosidade e estagnação: ensaios escolhidos. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2012.

[2] KANT, Immanuel. Resposta à pergunta: o que é o Iluminismo? In: A paz perpétua e outros opúsculos. Lisboa: Edições 70, 1990.

[3] BAUDRILLARD, Jean. Da sedução. Campinas: Papirus, 1991.

[4] Desde o começo do texto, refiro-me ao despertar e sua origem nas religiões e filosofias orientais. O leitor interessado encontrará uma exposição clara do tema nos capítulos XVII, XVIII, XIX da obra História das crenças e das ideias religiosas II (RJ, Zahar, 2011), de Mircea Eliade.

[5] SIMMEL, Georg. As grandes cidades e a vida do espírito. Revista Mana, 2005, v. 11, n. 2, p. 577-591.

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Wanderson Lima é professor e escritor. Doutor em Literatura Comparada pela UFRN, estuda as confluências entre mito, literatura e cinema. Publicou, entre outros, Ensaios sobre literatura e cinema (Horizonte, 2019) e a obra poética Palinódia (Elã, 2021). 

2 poemas de ESTHER BLANCO

subir para o alto
desde as tripas
pela voz
que suba a água do poço
que o ar corra
até o grito
o canto

dizer-se
ser palavra a borbotões
sair de dentro
sendo impulso orgânico
magma jorro
pura voz de si

dizer-se água folha vento grama
pedra contra os vidros
dizer-se onda
que explode em espuma
sobre a areia
dizer-se musgo
que se dobra e brilha
sobre a pedra
dizer-se alga
na água
da onda
que a leva
contra a terra
dizer-se
naturalmente
sendo
sem pensar no que tu és

viver deveria ser fácil
como o grito

subir hacia lo alto
desde las tripas
por la voz
que suba el agua del pozo
que el aire corra
hasta el grito
el canto

decirse
ser palabra a borbotones
salir de dentro
siendo impulso orgánico
magma chorro
pura voz de sí
decirse agua hoja viento hierba
piedra contra los vidrios
decirse ola
que revienta en espuma
sobre la arena
decirse musgo
que se dobla y brilla
sobre la piedra
decirse alga
en el agua
de la ola
que la lleva
contra la tierra
decirse
naturalmente
siendo
sin pensar en la que eres

vivir debería ser fácil
como el grito

AS CARPAS

havia uma bola de vidro azul e transparente
lascada como um fóssil de pedra
pesada e velha – bela
como eu quando era uma flor amarela –
guardava-a como uma rêmora
um pedaço de outra mulher que fui

como já nada disso importa
a joguei no rio no último dia do ano
um rio azul que passa sob uma ponte
entre álamos secos
que ascendem água acima
três carpas cinzas
como sombras

LAS CARPAS

tenía una bola de vidrio azul y transparente
descascarillada como un fósil de piedra
pesada y vieja – bella
como yo cuando era una flor amarilla –
la guardaba como una rémora
un pedazo de otra mujer que fui

como ya nada de eso importa
la lancé al río la última mañana del año
un río azul que pasa debajo de un puente
entre álamos secos
que remontan agua arriba
tres carpas grises
como sombras


Esther Blanco é espanhola, filóloga hispânica e mestra pela Universidade de Barcelona. Professora de língua espanhola e literatura na Espanha e no Brasil, hoje é coordenadora acadêmica do Instituto Cervantes Salvador. Em 2016, publicou Arena de los días/Areia dos dias. Este ano publicou Levar consigo um oceano/Llevar consigo un océano. Poeta selecionada no Mapa da Palavra da Funceb, tem poemas publicados em diversas revistas na Espanha e no Brasil e participou de recitais dentro e fora do país.

2 poemas de MARCELO FRAZÃO

DESPEDIDA

Ele rega meu jardim
com gasolina
senta na soleira
acende um cigarro
quer se despedir

e vai

apenas observo
mudo
do outro lado.

 

INFERNOS SE MULTIPLICAM COMO VÍRUS DENTRO DA GENTE

Com aqueles
que preferem
vinho doce
aos secos
não há diálogo possível

estas e outras coisas
só percebi
quando meus gatos me acordaram
recitando Lorca.

 

 

Marcelo Frazão publicou os livros de poemas Haikai (1996) e Homo Sapiens Sexualis (2ª edição, 2015). E nada pode ser feito quanto a isso, na coleção Cartas Bahianas Editora P55. Entre as publicações em parceria, destacam-se a plaquete Loveless (1996) e os livros Erótica (1999) e Erótica – edição comemorativa de 20 anos (2019), com Armando Freitas Filho; e Anima Animalis (2008), com Olga Savary, vencedor do Premio APCA em 2009.

 

POESIA: UM FINÍSSIMO E VIGOROSO FIO

FRANCISCO DAS CHAGAS SOUZA CARVALHO FILHO

Talvez seja a poesia o finíssimo e vigoroso fio que te mantém neste mundo, o frenesi dela a encher tua mente de vida. De outro modo já terias pedido para fechar a conta. Certas vezes, não há poesia que salve. Sylvia Plath, Sá-Carneiro, Alejandra Pizarnik, Florbela Espanca e outras tantas figuras que eu poderia citar decidiram fechar a conta. Torquato Neto também o fez. Não raro, os poetas são perseguidos por uma entranhada tristeza misturada à própria existência deles. Eu, poeta desconhecido e arredio, tenho picos de melancolia, mas aqui estou, vivo. Resistindo para quê? E por quê?

“Apenas a matéria vida era tão fina”, escreveu e cantou Caetano, no trecho retirado da letra da belíssima canção Cajuína. De tão fina facilmente se desfaz. Eu reparo nas brasas e nos incêndios, observo a gelidez e a euforia daqueles ao meu redor. Há casos em que quase nada me resta a fazer diante de pessoas queridas extremamente moídas pela existência. O que fazer perante Troias quando sou incapaz de construir cavalos de madeira? Tento algumas aproximações, mas sou repelido pelo que há de mais inquietante, o silêncio. Meus problemas, não poucos, são esquecidos nessa hora. Lanço a mão e ela não chega.

Qualquer um de nós é suscetível a ser tomado por uma tristeza capaz de nos desmantelar o ânimo e a vontade de viver. Alquebrados e macerados todos os dias, procuramos algum sentido em meio a tantos problemas e sofrimento. Eu mesmo tantas vezes tenho sido hospedeiro da dor. Em algumas ocasiões a vida nos pisoteia de tal maneira que desejamos algum subterfúgio, uma saída do inferno de decepções, traumas e certa indiferença doentia. É como se clamássemos pela evasão. Escreveu Camilo Pessanha:

Eu vi a luz em um país perdido.
A minha alma é lânguida e inerme.
Oh! Quem pudesse deslizar sem ruído!
No chão sumir-se, como faz um verme…

Longe de mim querer me tornar o verme de Pessanha, não obstante um tempo só para si, longe do burburinho até faz bem. Sou uma incoerência a não recusar a vida, a contemplar e lamentar as numerosas desgraças. Eu sigo porque ainda a aguento. Sou como o lenhador da estória ao encontrar-se com a morte. Mais perdido do que achado, eu sigo. Sou teimoso! Esperançoso? Não posso afirmar. Contraditório e vacilante, porém sigo, o que não me impede de aceitar que para determinadas pessoas uma hora ou outra o casco do navio racha. O desespero se apossa como nos versos abaixo de Sá-Carneiro:

Perdi a morte e a vida,
E, louco, não enlouqueço…
A hora foge vivida,
Eu sigo-a, mas permaneço.

A mente torta como os galhos de um cajueiro, o pensamento irrecuperável das cinzas e da doença, o devastador do Eu a devorar o Eu. De repente, ou desde sempre, o ferro quente na pele, a cicatriz do sofrimento presa ao tinteiro antigo daquilo que alguns chamam de alma. E quando o mundo se enraivece, e os olhos horrorizados se calam, acho-me estupidamente cansado. A despeito de tudo isso vou vivendo. Um dos versos de Bocage diz o seguinte: “A morte para os tristes é ventura.” Apesar de tudo, aprecio demais a vida.

Penso em ti, criatura querida. Como estás? Teu amor à poesia e à literatura decerto permanecem. Nisso há um laço entre nós, um fio conduzindo venturas. Tenho andado melancólico. Nem imaginas o quanto. O melhor do poeta, penso eu, é a poesia. Não tenho pretensões de originalidade nessa fala. Apenas a vontade de expressar, bem ou mal, um pouco de mim. Neste instante existe uma solidão em nós cuja densidade nos quebra. Teria sido melhor não haver escrito verso algum? Jamais haver se compadecido das desventuras de Bocage? Nunca ter se decidido poeta ao ler Rimbaud?

Aqui e ali eu fujo de mim. Não pretendo imitar o caminho da reclusão de parte significativa da vida de Emily Dickinson. Força! Preciso de força para arredar o pé de mim. Tudo me parece alheio, uma anestesia diante da vida, mas eu tomo choques para acordar. Sem essa de que todo poeta é triste. Novamente leio Lamentações (atribuído ao profeta Jeremias) e me coloco na atmosfera do poema. Não quero ser a cidade arrasada. Pensamos demais! Será essa a causa da pane? Será esse o fator determinante? Estou relendo os poemas de Pessoa. Alguns deles me ardem. É como se eu os tivesse escrito.

O cultivo da poesia conduz à tristeza? Não necessariamente. Jamais acreditei nisso. Ou acreditei? Sem a poesia o que me eleva? Não passo de um sujeito banal sem ela. Estou cansado! Cansado de quê? Troço de poeta, será? Leio um pouco de Rimbaud para desapegar do desânimo. Que venha o sátiro de Charleville. Com ele se dissipa a sensação de redemoinho, ao menos a minha.

Francisco das Chagas Souza Carvalho Filho é autor do livro de poemas Onde estão meus girassóis? (2022, Editora Tremembé), além de poeta é ficcionista e estudioso da literatura. Mestre em Letras pela UESPI, colunista da Revista Piauí Poético. Participou de diversas coletâneas literárias.