À LUZ DE VELA

LÍLIAN ALMEIDA

Faltou luz. A energia caiu depois da ventania. Tinha muito trabalho pela frente. A cabeça ainda elétrica. Sem luz, restava pouco a fazer. Aguardar. Dias antes, no mercadinho, olhei para as velas, ao lado das caixas de fósforo que peguei, e pensei que não precisaria delas. Sabedoria não falha no tempo das coisas. O momento das velas chegou e não as tinha. Certo assim!

A janela aberta para alguma claridade da noite de lua, coberta de nuvens, deixava o quarto um pouco menos escuro. A bateria do celular em 15% seria preservada para uma real necessidade. Os pratos na pia, as roupas para guardar em cima da cama, o feijão a catar, tudo teria que aguardar a luz. Fazer o quê? Deitei. Cogitei sobre o tempo necessário para restabelecer o serviço de energia elétrica. Quando voltasse teria isso e aquilo para fazer. Agora, nada não. Lembrei que poderia respirar. Seria uma maneira de relaxar, descansar para quando pudesse voltar ao trabalho.

A vizinha certamente divisou pela janela o breu do lado de cá e gritou se precisava de vela. Aceitei. Agora alguma luz dava espaço para guardar as roupas, tomar banho. Os pratos e o feijão ficariam para quando tivesse mais luz para discernir o bom do ruim, o feito do mal feito.

Luz de vela pede história. Era assim desde a infância no subúrbio precário em que cresci, nas muitas vezes em que faltava energia elétrica. Recordei que ficávamos em casa sob a luz tremeluzente da chama das velas, contando histórias de lobisomem, assombração, ou desenhando, com as mãos, sombras na parede. Às vezes a chama provocava um vulto e era o suficiente para alguém gritar e assustar todo mundo.

Agora era só eu no quarto, não tinha os primos, a avó ou os pais para contar causos. Olhei para o livro, na mesa de cabeceira, que avançava um capítulo por dia antes de dormir. Na adolescência, a mãe reclamava quando, nessas noites de escuro, eu levava a vela para cima da mesa, trazia um livro pra perto e lia as páginas amareladas pela chama da vela por horas a fio. Estraga as vistas, dizia. E ainda tinha o risco de botar fogo no livro, na mesa e, na dramaticidade da mãe, na casa inteira. Mesmo com o temor agravado pelas sentenças maternas, eu não deixava de ler à luz de velas.

Tomei o livro como fazia antes, posicionei a vela um pouco mais alto, acima de mim, para clarear bem. Com a experiência da adolescência aprendi que colocar a vela mais alta gera maior expansão da luminosidade. É preciso também sentar próximo, pois à medida que a luz se espraia perde força, brilho. Carecia de óculos para percorrer as letras. Demorou um pouco para as retinas se adaptarem, mas consegui dar ritmo e fluxo à leitura.

Desvendava a fuga de uma das personagens e a orfandade de outra, a irmã, que se agarraria à terra como a uma mãe. A terra enchia de significado a vida naqueles sertões. Coisa que a escola local ignorava, cheia de palavras estranhas, homens e histórias longínquas, alheias. Era o coração da terra que a irmã escutava quando deitava para cheirar a umidade do chão depois da chuva. Não podia sentir o mesmo com os cadernos. As horas iam no ritmo da leitura e das pausas que eu fazia para preencher as cenas com meu próprio repertório de vivências. Esqueci da vela. Lia como se estivesse junto com as irmãs separadas, solidárias à solidão de cada uma delas. Toda a ambiência era propícia à confluência entre as nossas vidas.

Agora chovia. Prestei atenção ao barulho da chuva no telhado e agucei o olfato para o cheiro da terra. Um clarão piscou, depois se manteve acendido. Lá fora, gritos alegres. Os eletrodomésticos emitiam ruídos como se voltassem à vida, a funcionar. O quarto agora estava iluminado pela lâmpada. A vela sobrava. Alguma magia desfez-se. Eu olhava a placidez da chama, adivinhava o cheiro do fim. Soprei. Um fio de fumaça dançou no contraste com a janela aberta. Sentada, inalei o cheiro de parafina como se mantivesse iluminada, dentro de mim, a infância.

.

Lílian Almeida é professora adjunta na Universidade do Estado da Bahia. Tem publicações em portais literários, revistas digitais e antologias. Participa de eventos literários no Brasil e em outros países. Foi uma das curadoras do I Encontro de Autoras Baianas. Publicou Todas as cartas de amor (prosa, 2014) e Pulsares (poesia, 2019, Prêmio Caramurê de Literatura).

A HIPÓTESE KRÓNOS

RAIMUNDO SOARES

01

a estrada é longa, o abismo,
aves devoram o tempo,
deus está ali nos arbustos
sem sarça ardente

não espante os fantasmas,
grite e morda a paisagem,
as horas mais densas
não cabem nos olhos

e resta o mistério
deus morto na ribeira
rio, te espera o cadafalso
iluminado por estrelas.

§

02

escrever é alquimia
auscultar o corpo faminto
na noite cega
nas mãos que não sinto

e tombar exausto e perdido
no caminho sem volta
o poema como agouro sombrio
na alma que se mostra

oh, mestre do terreiro
devora essa encantaria
é o mar no sangue
no silêncio do dia.

§

03

ninguém verá a sombra tardia
sob mil janelas cegas
a flor que cresce sozinha
não espera

que a tarde chegue
e devore a sagrada eucaristia
tombe, oh noite,
essa lua de tantos mitos

é uma chaga aberta
memento mori
o tempo é uma ave cega
que me devora o corpo.


Raimundo Soares é poeta, natural de Itapecuru Mirim, interior do Maranhão, servidor público. Participou da coletânea Babaçu Lâmina (organizada pelo poeta Carvalho Júnior). Parte de sua produção poética está no blog Turista exilado, e também na Revista Germina.

DOS MISTÉRIOS IMPERATIVOS

RITA SANTANA

A fim de entendimentos,
Inundas meu corpo de orgias e rituais.
Observa a impudência das begônias
E a cordura das rosas:
A precisão imperará sobre tuas mãos,
E se fará sabedoria no tempo da brusquidão
E no levante das gentilezas.

Vigia a erupção das avencas,
E a quietude que também é adubo
Para o seu esplendor.
Nada em mim perdura na sofreguidão:
Careço de palavras e de mutismos.

Não sufocar as raízes, nem a imersão das vontades.
A vida perde-se, soterram-se os desejos.
O trato é o mesmo: observâncias
Do que em mim é interno, é terra.
Húmus onde desatino gozo,
Onde tudo é Sacralidade e impureza.
Desde que aprendi a plantar cores no quintal,
Vivo assim, desintegrada da razão.


Rita Santana nasceu em Ilhéus, Bahia, a 22 de agosto de 1969. É graduada em Letras pela Universidade Estadual de Santa Cruz. É atriz com trabalhos em teatro, cinema e televisão; escritora e professora. Em 2004, ganha o Braskem de Cultura e Arte para autores inéditos com o livro de contos Tramela. Autora dos livros de poemas Tratado das veias (2006), Alforrias (2012) e Cortesanias (2019).

FEITO A IMAGEM E SEMELHANÇA

AIRTON SOUZA

feito a imagem e semelhança
dos que têm fome e presságios
ícaro cartografa na palma das mãos
os pronomes que semeiam as palavras:
terra e amor

sozinho faz atravessar, entre os próprios dentes,
o sentido uníssono das paisagens
que agora acreditam mais na infância
do que na silhueta perpendicular de deus

ícaro esquece as orações antes da guerra
porque sabe que os homens, ainda atávicos,
preferem pincelar ausências e tragédias
ou bordar no peito o peso dos ossos
quando estão distantes da tarefa de anunciar horizontes

tingido pela nudez das vozes
de mulheres, crianças e anciãs assassinadas
o corpo de ícaro sonha todos os dias
como conseguir terminar o único vocabulário
capaz de acordar as auroras
& fazer do escuro uma legenda sem desertos.

as confissões de ícaro não fabricam hemisférios
elas derramam o artifício de janelas
dentro dos olhos dos que morrem
antes de compreender a angústia dos arbustos
dos que perdem a noção das bugavílias
dos que amanhã, dentro da consumação do azul,
esquecem para sempre a retórica dos biombos
ou dos que sabem mais de abandonos e desgraças
do que de deus, ternura e estrelas

por não conseguir equilibrar uma pátria na língua
ícaro faz demorar em sua garganta
a tristeza dicionarizada pelos vaga-lumes
e isso o deixa sem saber abrir
a urgência mineral da dormência dos pássaros
o deixa caminhar longe dos pentecostes
e com a boca fedendo a hospício
as asas de ícaro repetem sem parar:
“deus não sabe imitar a efemeridade das árvores”

por vezes, ícaro tem vontade de ter um útero
só para chegar mais perto da primavera
& sem vírgula no próprio crânio,
ainda temerário, ter forças para gritar:
“nem deus, nem as mariposas estão consumadas!”

amputado pela anatomia do país
ícaro se engasga de quintais e pântanos
mas, interminável, germina outro amanhecer
onde deveria morrer os carrascos
onde deveria nascer a dimensão dos milagres
a ferrugem das sementes incendiadas de saudade
ou os estilhaços dos portos sem memória

para ícaro o último rosto da varanda
não esconde os sussurros inconsoláveis das águas
a inclinação dissipada das preces
o rubro das planícies negadas por deus
a relva abraçada de túmulos e a imaculação
o cheiro improvável e entreaberto dos suicidas
a aflição das mãos derrotadas pelas igrejas

amputado pelos ruídos das neblinas
ícaro batiza outras liturgias
na carne florescidas no rosto dos peregrinos
faz ressoar minúsculas sodomas quase vazias
nas retinas de homens que apertam gatilhos
pensando que é possível tingir o próprio filho
com ilhas e bangalôs

só ícaro sabe ampliar o sal dos séculos
na língua latifundiária dos assassinos.

ícaro sonha com casas, falésias e as últimas chuvas
porque não aprendeu a gênese da carne
há dias em que ele atravessa com dedos côncavos
a vociferação capaz de envelhecer os rios
tentando acordar as primeiras camadas das reticências
em outros perdoa os atlânticos ancorados
dentro dos corações dos mendigos
ou mesmo assim devota o sétimo dia na fome dos peixes

para enterrar uma procissão de hectares
que jamais dariam conta de multiplicar o idioma
em que a horizontalidade cândida de deus
ressuscita arquipélagos caligrafados amanhã
pela agonia das libélulas
ícaro sonha com mapas, amapolas e as primeiras obliquidades

ainda nu de retrato e contínuos holocaustos
& como se fosse preciso atravessar
todos os relevos caiados de indelicadezas
ícaro encharca as pálpebras com paredes
traz das catástrofes pronunciadas primaveras sem cheiros
para alimentar outra vegetação nas bocas das mães
que morrem sem aprender a devorar:
o lado mais obscuro de deus
a parte menos azul do assombro
os nomes soerguidos por deuteronômio
as antigas lembranças molhadas pelos cabelos

tanto a mãe que morre quanto ícaro
sonham com o abstrato amor esquecido
pela amplidão muda deixada pelo sudário de cristo.


Airton Souza [Marabá/PA, 1982] é poeta, professor e pesquisador. É doutorando no Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Cultura e Amazônia, pela Universidade Federal do Pará e Mestre em Letras, pela Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará. Já publicou 43 livros e já participou e mais de 100 antologias.

ADIÓS, MAFALDA

WANDERSON LIMA

Qualquer mitologia é um processo em construção. Os mitos mudam de significado e, até mesmo, podem ser substituídos. Cada época inventa ou recria seus mitos segundo suas necessidades.

E, como bem sabiam Barthes, Campbell, Eco e Eliade, os mitos não são heurísticas próprias apenas dos grandes sistemas religiosos. A mitologia pop das democracias liberais é pródiga de figuras e narrativas que sintetizam dilemas éticos, morais e políticos.

Como mitologias “profanas”, elas não sancionam nem fundam regimes de verdade, porém indicam os caminhos e os dilemas da consciência coletiva. São sintomas e, em alguns contextos, formas de intervenção, de que Mafalda, a menininha comunista, amada por metade da América Latina e odiada pela outra, é exemplo. Os Estados Unidos criaram mitos pops triunfalistas, como Mickey Mouse e a imensa galeria de super-heróis. São como a face inconsciente do arrogante papel de legislador do mundo que os EUA atribuem a si. Os dois mitos pops mais bem-sucedidos da América Latina são Mafalda e Chapulín Colorado, dois anti-heróis nada épicos, que lutam por justiça sem se sentirem, como Superman e sua trupe americana, portadores da justiça e juízes do mundo. Preciso explicar por que os dois são a síntese dos nossos dilemas e do nosso conflito de autoimagem?

Não é à toa que Mafalda oscila entre a utopia revolucionária e o pessimismo niilista. São os polos em que oscilamos em nossa jornada de sujeitos latino-americanos sem dinheiro no banco. Somos nós, ou ao menos uma parte muito significativa dos latino-americanos. Quino foi um poderoso mitólogo, e sua genialidade sintetizou nossos dramas na forma de humor e de indignação, de poesia e de revolta. Ave, Quino!

NA SANHA DO INTAMANHÁVEL

NUNO RAU

Resenha de XILOGRAVURA DE PÁSSAROS

há palavra inventada
para o que teu sorriso esculpe?
Carvalho Junior

Alguns poetas realizam, num curto tempo de vida, o que não raro se necessita de décadas de trabalho incessante sobre a palavra: desenvolver uma voz. Dizem que a chama, quanto mais intensa menos dura – a metáfora não é nova, mas lançar mão dela, no caso de Carvalho Junior, é mais do que apropriado. Em seus trinta e cinco anos de vida, e, pelo que pude observar, particularmente em seus últimos cinco anos, o poeta vinha consolidando essa voz que se constituiu em assinatura pessoal no contexto da poesia escrita no Brasil dos anos 2000 em diante.

Tendo como certo que pouco se lê, e quando se trata de poesia menos ainda, é importante buscar um desenho do que confere à poesia de Carvalho Junior essa singularidade, particularmente no caso de Xilogravura de pássaros (Editora Penalux, 2021), seu livro póstumo, mas todo pensado e organizado pelo poeta. Entre tanta e tão vasta e diversa produção contemporânea, o que distingue esse poeta que, por sinal, não se afirmava poeta, mas versicultor?

Este já é um ponto notável de distinção: ao não se conferir a denominação poeta, e preferir versicultor, Carvalho aponta para o trabalho do poema em vez de dar valor aos louros da atividade, ao título. Versicultor, que em breve pesquisa não consta em nenhum dicionário on line de língua portuguesa, é aquele que se ocupa da produção de versos, do poema, de sua carpintaria, sua arquitetura, na lavra cotidiana das palavras. Aqui temos mais um aspecto que revela o grau de consciência de Carvalho sobre seu ofício. No livro Ideia da prosa, Giorgio Agamben nos lembra que versura é o termo latino que designa o lugar em que o arado dá a volta no fim do campo, e, por homologia, designa igualmente aquele ponto em que o verso termina, mas não necessariamente a unidade sintática da frase que ele conduz, a ideia, que pode prosseguir no verso seguinte, e assim sucessivamente. A poesia parece iluminar, em quem dela faz um eixo da vida, essa conjugação de sentidos e possibilidades, e com Carvalho não se fez diferente.

Vejamos alguns de seus livros anteriores, como exemplos da ideia que perseguimos nesse texto. Em No alto da ladeira de pedra (Editora Patuá, 2017), o poeta (sim, poeta!) declara ser um índio fantasma da tribo Quirola, para então desfilar o conjunto de signos da cosmologia extraída de sua Guanaré, mais tarde chamada Arraial das Aldeias Altas e, a partir de 1836, município de Caxias. Essas aldeias altas eram habitadas pelos aroás, guengês e pelos timbiras – conjunto de povos indígenas do tronco Macro-Jê: apanyekrá, apinayé, canela, krahó, krinkatí, pukobyê, os pouco numerosos krenyê e kukoikateyê, e os kenkateyê, krepumkateyê, krorekamekhrá, põrekamekrá, txokamekrá, que se dissolveram entre alguns dos povos timbiras inicialmente enumerados. Só por essa breve enumeração se pode entrever o caldeirão de cultura em que bebeu Carvalho, assim como a paisagem rural, com seus rios, fontes, sertões, céus azuis, se trança com o registro urbano das ladeiras de pedra, pistas de asfalto, casarios, jardins, e em meio a tais cenários se desenrola a aventura que vem dos ancestrais e atravessa a carne do poeta. Essa ancestralidade adensada no corpo do poeta é o que faz nascer O homem-tijubina (Editora Patuá, 2019), que sabe que “o outro lado da vida está no verso”. De novo a poesia ilumina quem a abraça produzindo significados inesperados: tijubina é um lagarto que habita o espaço das cidades daquela região, símbolo de resistência e símbolo de renovação, porque quando tem sua cauda arrancada, ela renasce, recompondo seu corpo mutilado. Melhor metáfora para poeta talvez não exista, e não só, para qualquer ser vivente que enfrente os embates da vida, com suas pequenas mortes, acidentes, veredas e descaminhos. Se relacionarmos ao poeta a ideia da tijubina, o poema é a cauda, que, arrancada, ainda pulsa isolada do corpo.

Ficamos nesses dois exemplos de livros anteriores, porque neste texto não se pretende uma análise crítica da poesia de Carvalho Junior; o objetivo é apenas dar uma notícia do tanto de realidade que estava impressa em seus versos. E alguma clarividência, já que o poeta acertou ao vaticinar que era “dessas sementes desacreditadas/ que o vento rouba das cercas da morte/ e lança na outra margem do rio/ pelo milagre do bico do pássaro”. Eis que o vento, pelos nossos olhos leitores, carrega os versos do versejador – para não fugirmos ao seu termo preferido – que crescia a cada livro, produzindo uma poesia extremamente original, profunda, atravessada pelas vozes de sua terra natal, as vozes ancestrais, e também pelas manifestações da natureza em sua diversidade: rios, flora, fauna, pedras, tudo em seus versos adquiria uma personificação, um estado de alma que nos comunicava algo de essencial, e por modos que reproduziam a sua escuta apurada da fala local. A geografia e a linguagem eram suas ferramentas, e ele as manejava cada vez com mais precisão, abandonando progressivamente qualquer traço de influência com que todo poeta constrói sua voz pessoal e intransferível. Carvalho ao partir tinha 35 anos: fico imaginando o que iria fazer aos 50, 60 anos, com o aprofundamento de meios e de olhares, com o permanente caminho que tinha estabelecido de questionamento do fazer poético.

Importa também dar notícia do modo sempre amistoso de aproximação Carvalho, a forma como construía as pontes com as pessoas, sua simplicidade elegante, uma simplicidade que escondia, como se entrevê nos parágrafos acima, um poeta cuja profundidade vinha sendo elaborada diuturnamente, por um lado extremamente atento aos movimentos do presente, por outro imune a todo modismo que o desviasse do caminho traçado por seus versos, que ele sabia – ou intuía – um percurso independente de qualquer campo majoritário da poesia contemporânea, sem que, com isso, quisesse contestar ou desconstruir o que quer que fosse. Seu nome era comunhão.

Essa comunhão era demonstrada de muitos modos e em não poucas searas. A nota de pesar emitida pelo Centro de Ensino Gonçalves Dias, do qual fora o diretor-geral, declarou: “Ele nos fez gostar ainda mais de poesia. Estava no seu sangue a poesia, estava em seu viver”. Nada mais acertado poderia ser dito, nós que de algum modo tivemos sua convivência sabemos bem o quanto a poesia era para ele não um exercício de orgulho, mas uma prática que se assemelhava à fé para os que creem, algo que permeava seus dias, sua vida e seus gestos (importa dizer que quem escreve estas linhas é um agnóstico feroz, o que, penso, torna a comparação mais forte ainda). A sua generosidade e receptividade se estendiam no ato de espalhar a poesia de seus pares, dialogar com ela, criando intercâmbios entre pessoas e instituições.

Xilogravura de pássaros aprofunda o caminho consciente que Carvalho Junior vinha pacientemente construindo. Comecemos pela dedicatória: “para os pássaros-índios de minha vida, Raimundo, Elias e Francisco. E para todas as outras ramificações que dão substância ao meu canto”. Ancestralidade, afeto e traços de sua cosmologia se imbricam em poucas e profundas palavras; mesmo quem não leu seus livros anteriores pode intuir para onde a bússola do poeta aponta. A despeito dessa coesão, Xilogravura de pássaros como que representa o corpo do poeta e o corpo do poema, como posto, e nada fortuitamente, no poema “Esfinge”, que abre o livro: “o poeta, xilogravura de pássaros,/ se revigora na esfinge do silêncio:/ de uma sílaba de revestrés, lançada/ na escada de areia deste chão de urtiga”. Os pássaros e seu canto são realmente uma presença que atravessa o livro: trinados, gorjeios, gaiolas, plumagens e outras metonímias marcam a relação entre poeta e ave.

O livro é dividido em três partes: Os sibilos da casca, Outros engasgos na enfieira e Azul sereno no anzol. Já esses nomes impactam por sua matriz oracular, de sentidos que se rebelam e apontam para mais de uma direção. O que seriam os sibilos da casca? Aqui entrevemos que o livro vai nos situar diante do drama que se desenrola na relação entre indivíduo, linguagem e mundo: sibilos, popularmente conhecidos como chiados, se caracterizam por um som agudo, parecido com um assobio, que é ouvido quando a pessoa respira, e consistem numa patologia: ocorrem durante a respiração quando há bloqueio parcial das vias aéreas, por alergia, asma ou problemas no sistema respiratório. O poema seria, então, o sintoma de uma patologia. E a casca? Diz o poeta que “a casca deste chão/ é o umbigo da minha voz”, dando a entrever a relação telúrica que sua poética desenvolve e indicando a parcela-mundo do sistema pessoa-linguagem-mundo que seu olhar elabora.

No primeiro poema (o já citado “Esfinge”), poeta e esfinge se confundem, a tijubina – que não entrega seu nome – ressuscita e, poeta, se revigora no silêncio. A atmosfera é de suspensão, algo que precede o Acontecimento (o poema?) atravessa todos os versos. Há espera, olhares expectantes, e o livro se abre, inaugura-se. Em “Lâmina e liame” o poeta inscreve no corpo as raízes de sua poesia, da pulsão à febre, da voz ao sopro, alma, que ecoa sons da infância. É neste livro, por sinal, que a cosmologia ameríndia & urbana de Carvalho aparece com os contornos mais nítidos, precisos, denotando projeto e desígnio. O livro é todo ele um pátio – lugar de repouso e reflexão – onde a imaginação conflui com o pensamento no desenho/xilogravura do real. Não é, decerto, o real mesquinho, cotidiano, reduzido a golpes do neoliberalismo até esconder-se no insignificante. O mínimo, quando aqui comparece, é para lembrar que contém o projeto do universo, que há comunhão entre grão e galáxia, como em “Além do intamanhável” e que em “Fortuna” espelha a trajetória que vem dos antepassados:

do meu pai
uma faca de desossa.

de minha mãe
uma agulha de mão.

o que mais herdei do mundo?

quatro quibanos de utopias quebradas,
a teimosia de trinta gerações inteiras,

uma cuia de infecundas sementes,
quatorze pedras no alto da ladeira,

um açude de peixes sem respiração,
oito balaios de apitos de madeira,

um rio de pássaros trêmulos na boca,
a bilha ardente das águas da Gameleira.

As obsessões do poeta estão aí lançadas, como pedras ao rio. Entre aquelas que remetem ao passado, há (e não apenas nesse livro) outras que remetem a certa asfixia, o poeta fala do fundo de um poço: “a vida inteira estive dormindo dentro de um poço escuro e sujo,/ afogando-me o nome, o pássaro e a semente, a infância e o amor”. As condições objetivas do mundo, as limitações, os sistemas, o modo como os aspectos do capital se infiltram em nossa carne (como agulhas), tudo isso cria uma interferência ao (im)possível idílio que a ancestralidade desenharia. Nela mesma está inscrita a tragédia: povos dizimados, de um lado, populações inteiras sob o jugo do poder, como os balaios. A tragédia da asfixia – social, histórica, existencial – explica os sibilos.

É dessa massa de anônimos e de vidas que foram apagadas que o poeta extrai personagens imaginárias que deslindam definições de poesia em “Simpósio”: Danton de Quirola, Alice Maranhum, Pai Nêgo dos Silvestres, Elias Soudade, Acrísio Marmo, Isabel Aldeia, Zeca Condave e Júlia Pardoca são alter egos do poeta, e nos traduzem o que seja a poesia, ou seja, o intraduzível (o que se perde na tradução, como disse Robert Frost – e perde-se sempre demais, acrescentaria), sendo, também, o retorno do recalcado no contexto maior da História. E não é só ao concerto de vozes silenciadas que Carvalho alude: o poeta está atento não apenas às palavras, mas às partículas que as compõem, as letras, como atesta “Vogais”, no qual o versejador ensaia um pós-Rimbaud-de-alma-timbira (não resisto a transcrever todo o poema):

[a]
alma-de-gato em flutuação no açude das bocas e na ferrugem do amor fora do ninho.

[e]
estrelinha-do-norte com espeto de delicadeza nos ecos dos uí-puís escondidos nas sobrancelhas brancas da árvore de fonemas virgens.

[i]
inhambu-relógio atrasada para o início da noite em que o desenho do sorriso da índia ainda se guardava numa flor de jenipapo.

[o]
olho falso de uma sabiá-de-óculos choradeira de ontens no trincado amarelo de anéis dentro do ouvido sem espanto.

[u]
Uru-de-topetes derramador de flautas de bambu na libélula das orelhas despertas às funduras nascentes da noite urutauzada de utopia.

A vinculação entre som, imagem e sentido é profunda, e nos captura para dentro do poema em sua vertigem. Chegando quase ao final da primeira parte do livro, Carvalho nos entrega uma de suas influências: Nauro Machado. A profusão de imagens e a sonoridade da poesia de ambos guardam forte relação, e no melhor sentido, posto que não de superfície ou de emulação formal – é constitutiva, e sabe a alquimia, porque comparecem também Jorge de Lima, Augusto dos Anjos, Murilo Mendes e outros, como metais no cadinho de Carvalho Junior.

Avançamos, então, para a segunda parte do livro, Outros engasgos na enfieira, onde o poeta-pássaro se transmuta em poeta-peixe (porque o Maranhão possui uma invejável rede hidrográfica), mas já pescado e pendurado num galho em forma de forquilha, a enfieira. Os poemas – que antes foram sibilos – são o engasgo, o espasmo do peixe antes do fim, como em “Forquilha”: “o/ homem/ é peixe no (es)cambo,/ um riacho antigo/ de margem quebra-/ da”. Eles oscilam entre a reflexão consciente, portanto triste, e a investigação do sonho, da memória ou do delírio, a atmosfera densa, pesada, assomando em versos como “na carcaça da noite me desespero,/ […] / uma dor pronunciada em esperanto”, ou “a dor, punhal da sorte que me invade,/ papoula rubra que dorme meu infarte”, ou ainda “há um buraco, bem fundo,/ na sombra que me acompanha”. E assim, entre os engasgos e o maravilhamento pelos afetos, como em “Flor de malícia”, “XIV”, “Mãe Nêga” ou “Cigana acrobata”, a segunda parte do livro compõe com a primeira uma poética do sintoma, do poema como cicatriz (no corpo, no pensamento) que é a tatuagem-xilogravura que o mundo deixa impresso em nós quando passa.

Na terceira parte do livro, Azul sereno no anzol, o poeta se metamorfoseia num Bashô-tropical-ameríndio e propõe uma “Teoria do haicaçu”, que é “um poema que possa flertar-flechar, fecho-éclair com o haicai, mas que tenha um sabor de babaçu, a substância da semente na sobrancelha do azulão.”. Fato é que Carvalho Junior, em sua oficina poética, vinha experimentando algumas formas fixas. As duas primeiras partes contam com sonetos quase sempre decassílabos, e estes haicais obedecem, quase todos, ao rigor do 5-7-5 na escansão dos três versos. No entanto, todo o olhar dos poemas é voltado para a paisagem do cerrado maranhense, sua fauna, sua flora, seus habitantes.

Como aludi no começo desta resenha, partiu cedo demais o poeta e amigo Francisco de Assis Carvalho da Silva Junior, ou Carvalho Junior, como assinava seus poemas. Estávamos em pleno arco da grave pandemia que se abateu sobre o planeta, e com os rumos do país regidos por um (des)governo com traços de fascismo, e, conforme demonstrou uma Comissão Parlamentar de Inquérito (e não apenas ela, mas o noticiário), mergulhado em corrupção e incompetência, fatos que, aliados ao negacionismo generalizado (com fins instrumentais para a política e aspectos claramente ideológicos), fizeram com que a vacinação da população brasileira fosse postergada em alguns meses, tempo esse que nos custou muito caro – no momento em que escrevemos este texto, as estatísticas contam mais de 680.000 mortos, excluídas, por óbvio, as subnotificações, que só a História poderá, com muita pesquisa de documentos, precisar. A vida de Carvalho Junior é um exemplo do irrecuperável dano causado ao país, num polo, e às famílias, no outro, por este governo que zomba da Constituição, do equilíbrio entre os poderes, e, pior que tudo, do seu povo, entregue a todo tipo de dilapidação.

A vida, entretanto, segue desígnios não raras vezes incompreensíveis, brandindo, diante de nossos olhos, opostos de difícil conciliação, numa dialética que atordoa e não conduz a qualquer síntese, somente nos empurra em direção a um futuro que pode soar sem conexão com tudo o que o antecedeu. Os livros que Carvalho nos legou funcionam como estopins do sentido, aguardando apenas que o acaso – ou nossas buscas pessoais, ou ambos – nos façam folhear suas páginas e descobrir mundos possíveis que o poeta deixou como sinais xilogravados em seus poemas, à espera de corações e mentes ávidos.

INTREPIDEZ, DETERMINAÇÃO, COMPETÊNCIA, AFETO

ANTONIO AÍLTON

Intrepidez, determinação, competência, afeto: nada daquele espírito que assombra certos poetas (de cujo lado, confesso, talvez eu me encontre), a introversão, o pessimismo, o desajuste, o crepúsculo. Não. Carvalho Junior era o poeta que não se deixava abater, e cujo projeto era a alegria e a expansão.

Eis, talvez, por que sua estrela levou pouco tempo para brilhar intensamente, para tornar-se supernova. Em pouco mais de dez anos, entre 2010 e 2021, ele alcançou o reconhecimento inquestionável de seu estado e de certas instâncias por onde passeia a poesia nos quatro ventos do país. Algo que conquistou pelo seu próprio esforço, inclusive de viagens a encontros, como os da Casa Amarela, em São Paulo, chegando a levar outros amigos consigo, como numa viagem intempestiva em que nos arrastou, a mim e a mais três poetas, para o famoso recital paulista; fosse pelos contatos diários com autores do chão e dos ares brasileiros, ou através dos grupos e divulgações nas/das redes sociais, ou, ainda, dos projetos coletivos, culturais, educativos que promovia, com enorme calor humano e afetividade. E lendo o que podia, que pudesse ser considerado de qualidade ou de novidade. E escrevendo. E recitando… Nos recitais, nós não o parávamos. Em algum poema, ele tirava os sapatos e jogava para cima, e haja poesia! Carvalho Junior era o nosso homem-menino.

Quando o conheci, ele dava andamento ao projeto “Na Pele da Palavra”, em sua cidade, Caxias, no Maranhão, com a esposa, Joseneyde Ferreira, que hoje cuida de sua obra, e o poeta Salgado Maranhão, que contribuía, mesmo que à distância, além de outros poetas da cidade. Ele chegou a convidar muitos autores e autoras para homenagear, em noites regadas a criatividade e devaneio, na praça da Igreja Matriz ou num posto de gasolina. Foi através desse projeto que chegamos a promover um encontro para discutir a poesia contemporânea na cidade de Caxias, com presença de poetas das regiões Norte, Nordeste e Sudeste, em 2019. Utilizei duas palavras de que ele gostou muito para resumir aquele encontro: inquietude e semente. Inquietude e semente, repetia, o que era ele próprio, inquietude e semente.

Havia uma identificação, sempre houve, entre a poesia dele e a minha, para além da nossa amizade. Mandava-me fotos, sentado em algum bar, com um livro meu nas mãos. Não à toa, nessa relação de amigos e reconhecimentos mútuos, pude dizer algumas palavras em pelo menos três dos seus livros (e agora me surpreendo com isso, essa quantidade!), do seu suprassumo: a orelha de No alto da ladeira de pedra (2017), a de O homem-tijubina (2019) e um posfácio, também a seu pedido, para o seu esplêndido Xilogravura de pássaros (2021), que veio a ser publicado postumamente. Carvalho foi um daqueles travessos de interior (assim como eu), de colher goiabas, pitombas e mangas nas soltas e quintais, tomar banho de açude, grotas e rios, pescar, passarinhar (perdoem-nos!), mas era ele mesmo um passarinho. Depois, a vida numa cidade do interior, o conhecimento e as relações com as metrópoles; a família, o trabalho como educador. Tudo isso desembocou na sua poesia. Para ele, o maravilhamento, o canto, a diuturnidade e a inocência chã, o telúrico, os pais e avós, as filhas, em primeiro lugar. E daí deriva sua palavra contra as injustiças, os engodos, os revezes políticos.

Carvalho Junior era esse ser partícipe da imensa alegria de viver, e poder transformar essa vida em poesia, um amigo doado, um homem comum. Mas é também um grande poeta, que está em nosso coração e em nossa voz, no panteão dos nossos. Partir tão cedo e da forma como partiu nos dá aquela revolta íntima, porque as coisas, com um pouco mais de cuidado e providência pública, poderiam ter sido diferentes. Ficamos com aqueles goles na garganta, e o brilho de sua poesia. Vez em quando, converso com ele, quando, entre outras coisas, me diz algo como em seu poema Trinados, do Xilogravura: “Nada me quebra / o torno do assovio. // nada no mundo / me descriançaliza. // vivo o tempo todo / com meus pássaros”. É assim que voamos com ele, quando ele abre as asas.

5 poemas de CARVALHO JUNIOR

LÂMINA E LIAME

a casca deste chão
é o umbigo da minha voz.

do trançado das folhas de palmeira
a substância da rosa de Celso Antônio:

os meus 24 centímetros de porrete
de homem negro brasileiro.

a alma cacunda das ladeiras,
o uivo da lâmina do machado,

os impulsos da mão de pilão,
a quebradeira e seus aleijos,
o sopro-enigma da juriti-pupu,
o cascudo debaixo da pedra
.
.
.
daí o caroço da funda lágrima,
o gongo da infância em fogo-sezão.

TAPUIA

há palavra inventada
para o que teu sorriso esculpe?

para o voo de luz que se embrenha
nos parques e borboletas do sonho?

para a margem esquerda de um céu,
de sílabas mansas, que me fluem
como uma ponte sem nome?

nem mesmo Neruda concebeu
o ímpeto da cascata do teu riso.

e as lavadeiras, em coreografia,
pedem um dilúvio dessa flama-opala
que sombreia o homem no quintal.

as lâmpadas da catedral,
que se esboçam nos teus
lábios quentes de tapuia,

me inundam de volúpia,
me ungem o corpo todo
de cupuaçu e água de rio.

TRINADOS

nada me quebra
o torno do assovio.

nada no mundo
me descriançaliza.

vivo, o tempo todo,
com meus pássaros.

O ESCURO DO MEU RISO

o escuro do meu riso assusta a lâmpada,
o semblante da cozinha inundada.
a dor, punhal da sorte que me invade,
papoula rubra que dorme meu enfarte.
a noite é um orgasmo de cinzas,
tem uma face triste de domingo,
as lágrimas que me rasgam, não as sinto.
algo, antes de mim, que de mim se vinga?
tosse, forte, aqui, uma angústia infinita.
serei eu filho de um carbono maldito?
o escuro do meu riso acorda a lâmpada,
geme o último raio da alegria,
regenera-me as cordas da garganta,
salva-me o peixe depois da asfixia.

CIGANA ACROBATA
para Clarissa Macedo

ó, tijubina, lagarta do mato,
arco sagrado das minhas janelas,
infâncias se acendem em tua cauda,
rabo teimoso do chão de malícias.
amo a disciplina da tua fuga,
do teu chicote amarrado de pontes,
cigana acrobata, graça na areia,
em cada cipoada doze pélagos.
dança assim nua nesta frágil manhã!
menina índia me embira na ginga,
bebo o melão com mel de tua língua.
sou tijubinocentrista incurável,
amor aceso, voa sobre os verdes.
miro-te sempre em meus morros de pedra.

Poemas selecionados por CLARISSA MACEDO